terça-feira, junho 19, 2007

Um dia de chuva muito especial - Sydney Taylor

Nova Iorque, Lower East Side, 1912. A área sudeste de Nova Iorque, acolheu milhares de emigrantes durante as grandes ondas de emigração para a América. Esta zona pobre da cidade tornou-se na área com maior densidade populacional do mundo. Aqui viviam pobremente muitas comunidades estrangeiras, entre elas a de Judeus. Era na Lower East Side que se encontrava a maior comunidade Judaica do mundo. Num modesto apartamento, vivem Ella, de doze anos, Henny,de dez, Sarah, oito, Charlotte, seis e Gertie, de quatro anos, com a mãe e o pai, um comerciante de coisas usadas. O dinheiro não abunda, mas a mãe dirige a casa habilmente. Uma casa onde reina a alegria e a harmonia.

A Lower East Side de Nova Iorque era uma zona pouco bonita. Não tinha relva e nos passeios cinzentos e nas sarjetas calcetadas nada crescia. Flores, só as que se viam nas poucas lojas de floristas. Não havia alamedas ladeadas por árvores. Nos passeios só havia candeeiros a gás. Não havia um ribeiro onde as crianças pudessem chapinhar nos dias de Verão. Só o rio East, cujas águas, verdes escuras e sujas, cheiravam a peixe, a madeira alcatroada dos barcos e a lixo putrefacto.
Como muitas outras famílias judias, o pai e a mãe moravam com as cinco filhas no bairro muito povoado de Lower East Side de Nova Iorque. Ao contrário da maior parte das famílias, não moravam numa casa grande, mas num apartamento de quatro assoalhadas e vestíbulo, de um prédio de dois andares.
O pai tinha uma loja não longe do rio, na cave de um antigo armazém. Para lá chegar, tinha de se descer por uma escada de madeira perigosamente estreita, sem corrimão. Mas isso não impedia as meninas de irem visitar o pai. Iam lá muitas vezes, pois, para elas, a loja era como um reino de contos de fadas. Era uma loja de coisas velhas.
As escadas acabavam numa sala ampla, onde estava a escrivaninha e a cadeira que o pai usava para a contabilidade.
Do lado oposto da sala havia algumas cadeiras colocadas em semi-círculo e um fogão de sala. No Inverno, o fogão não conseguia aquecer a grande sala. Em cima dele, uma chaleira cantava ininterruptamente. O pai tinha o cuidado de a ter sempre cheia para que os caixeiros-viajantes e os negociantes das vizinhanças pudessem aquecer o estômago com uma chávena de chá quente enquanto se sentavam à volta do lume a conversar. No Verão não havia chá e o fogão estava apagado, mas a sala era fresca e húmida, e por isso os vendedores também gostavam de se sentar nas cadeiras a conversar. Nas traseiras da sala é que estava a loja propriamente dita; primeiro, a secção do ferro-velho, com montanhas de ferro, zinco, estanho, talheres de cobre. Depois era a secção do papel, com montanhas de jornais e revistas, e por último, a dos trapos. Aqui o pai tinha mais trabalho, porque tinham de ser separados e metidos em caixas.
Uma manhã, as irmãs foram acordadas pelo bater da chuva.
Charlotte encostou o nariz ao vidro da janela e disse:
– Está a chover a cântaros! – disse Charlotte com o nariz encostado ao vidro da janela.
– Que diabo! – exclamou Henny – Hoje o dia vai ser aborrecido.
– Podíamos ir visitar a Fanny – propôs Ella. Fanny era a melhor amiga de Henny.
– Não podemos porque estamos zangadas.
– Outra vez? – disse Sarah. – E não podem fazer as pazes depressa?
– Não, nunca! Nunca mais vou tornar a falar com ela.
– Mas vais ter de te reconciliar quando chegar Jom Kippur (festa do perdão). Bem sabes que nesse dia temos de perdoar tudo – lembrou Ella.
– Oh, ainda falta muito tempo – disse Henny com um encolher de ombros.
– Há muito para fazer! Podem ajudar-me à vontade – disse a mãe que acabara de entrar no quarto. – Não olhem para mim com esse ar de zangadas! – disse a rir. – Ainda vos vai sobrar muito tempo para brincar.
Às dez horas todas as tarefas estavam cumpridas. De seguida, as que tinham aulas de piano, tinham ainda de estudar durante vinte minutos. Depois estavam finalmente livres.
– Podíamos fazer teatro – propôs Henny. – Se a mãe me emprestar o lenço cor-de-rosa com as moedas, eu podia dançar e a Ella tocava piano.
– Oh, fazes sempre a mesma coisa – disse Charlotte. – Por que é que não vamos ter com o pai à loja? Talvez estejam lá muitos vendedores. Como está a chover…
A chegada das crianças foi recebida com alegria pelos caixeiros que lá se tinham reunido.
O pai levantou os olhos do livro, acenou-lhes alegremente e regressou à sua contabilidade.
– Charlie! – disse ele ao empregado. – Leva as meninas à secção do papel e mostra-lhes o carregamento de livros que chegou esta manhã.
– Livros! – gritaram as cinco filhas. – Tu nunca recebeste livros, papá! Há lá livros para crianças? Podemos ficar com eles?
– Devagar! Uma coisa depois da outra – disse o pai. – Foi um vendedor ambulante que os trouxe. Um senhor rico da zona alta da cidade mudou de casa e aproveitou para dar uma volta à biblioteca e escolher os livros que já não queria. Recebi-os esta manhã e ainda não tive tempo de os ver, mas se quiserem podem ficar com alguns. O melhor é irem até lá e escolherem porque acho que vou vendê-los ainda hoje.
As irmãs correram para a secção do papel com Charlie atrás delas.
No chão havia montes de livros. As cinco meninas precipitaram-se sobre eles.
Gertie ainda não sabia ler. Assim que viu que não havia nenhuns livros de imagens, pegou num caderno colorido, sentou-se entre duas pilhas de jornais velhos e começou a virar as folhas devagar. Para ela, a caça aos livros tinha acabado.
Charlotte descobriu com um grito de júbilo, um livro de contos de fadas. Um livro novinho em folha, de capa brilhante e colorida. Estava escrito numa linguagem simples e impresso com grandes letras pretas.
Charlotte começou imediatamente a ler e o mundo à sua volta desapareceu. Para Charlotte, a caça aos livros também ficava por ali.
Quanto a Henny, não se esforçou muito, limitando-se a passear por entre os montes de livros.
– Ei! – chamou Ella. – Não nos ajudas a passá-los em revista?
– Para quê? Vocês fazem-no muito melhor do que eu, tenho a certeza. Procurai também algum para mim. Qualquer coisa me serve.
Ella e Sarah eram as únicas que procuravam a sério. Pegavam nos livros um por um e viam-nos com cuidado.
– Encontraram alguma coisa? – perguntou Charlie.
– Não – respondeu Sarah. – Ainda não!
– Olha aqui! – gritou Ella de repente. – Estes aqui são para nós! Olha, uma série deles de Dickens! – olhava para Charlie com os olhos a brilhar.
– Charlie, achas que o pai nos deixa ficar com eles todos?
– Não sei – respondeu Charlie. – O melhor é tu perguntares.
– Ella! – disse Sarah num tom queixoso. – Parecem livros para adultos! Eu ainda não os consigo ler!
– Não faz mal – respondeu a irmã mais velha. – Vais lê-los quando tiveres a minha idade.
– Mas isso ainda demora muito tempo. Eu quero alguma coisa para agora!
– Talvez encontremos ainda alguma coisa – disse Ella.
Continuaram a busca e encontraram a tal coisa “para agora” mais maravilhosa que se podia imaginar. Precipitaram-se sobre o livro e, mal abriram a primeira página, chamaram Charlotte, Gertie e Henny com gritos de entusiasmo. As irmãs vieram a correr admirar o achado. Era um sonho!
O livro chamava-se “As nossas bonecas preferidas”. Numa página estava impresso o texto e nas seguintes havia uma folha de papel com bonecas e roupas relativas ao texto, para serem destacadas.
– Não são um amor? – gritou Charlotte, apontando para um vestido azul, digno de admiração, com capa a condizer.
– Oh, vejam esta página! Só tem roupas de Inverno e é a história de quando vão patinar no gelo!
– O livro ideal para um dia de chuva, não acham? – observou Charlie, divertido.
As meninas voltaram para junto do pai com os livros de Dickens, o livro de contos, e o “As minhas bonecas preferidas” debaixo do braço, para lhe mostrarem os seus achados.
– Podemos ficar com eles todos? – perguntou Ella.
Não puderam acreditar quando ouviram “sim”. Era bom de mais!
– São mesmo nossos? Não temos de os devolver? – Repetiam a pergunta só para terem o prazer de tornar a ouvir a resposta.
– Sim, são vossos. Mas agora ide a correr para casa e deixai-me trabalhar – disse por fim.
As crianças apressaram-se a subir as escadas.
– Tenho uma ideia maravilhosa! – exclamou Sarah. – Quando chegarmos a casa, vamos brincar às bibliotecas. Eu sou a senhora da biblioteca e vocês têm de vir ter comigo e requisitar os livros.
– E por que é que tens de ser TU a senhora da biblioteca? – perguntou Henny. – Quero ser eu!
– Não, eu! – gritou Charlotte.
– Mas a ideia foi minha! – respondeu Sarah.
– Está bem, concordou Ella. – Vou fazer-te um penteado exactamente igual ao da senhora da biblioteca.
– Eu vou pedir à mãe que me empreste a saia preta velha – disse Sarah. E quando eu andar também vou fazer barulho com ela, como a Miss Allen.
– E eu tenho de perguntar se tens algum livro bom para mim e tu vais ter de sorrir e dizer: “Sim, claro! – acrescentou Charlotte.
– E eu faço barulho e tu tens de dizer “Chiu!” – acrescentou Henny, com os olhos a brilhar.
– Posso ver o livro das bonecas? – perguntou Gertie.
– Podes, sim, mas não podes começar a tirar as bonecas. Fazemos isso todas juntas, logo à noite.
– Eu nunca pensei que um dia de chuva pudesse ser tão divertido! – disse Sarah.





Sydney Taylor
Die Mädchenfamilie
München, DTV Junior, 1988
Excerto traduzido e adaptado