domingo, maio 20, 2007

Para uma biblioterapia - Claudio García Pintos

Claudio García Pintos
A Logoterapia em Contos
S. Paulo, Paulus, 1999


Excertos adaptados



No ano de 1977, o Professor Viktor Emil Frankl inaugurou a Feira do Livro da Áustria com uma conferência sobre o livro como recurso terapêutico, na qual defendeu a possibilidade de cura através da leitura. Na oportunidade assinalou, até, casuisticamente, situações em que um livro salvou uma vida, fazendo o leitor desistir da ideia de suicídio, e outras em que pessoas doentes, no seu leito, se viram reconfortadas pela leitura.

Comentou igualmente o caso de pessoas que, estando presas, melhoraram a sua atitude de vida por intermédio de um livro. Citou, por exemplo, Mitchell, um preso de San Quentin, em San Francisco, sentenciado à pena de morte na câmara de gás. Inteirado de tal circunstância por ocasião de uma palestra para presidiários, Frankl convidou-o a descobrir o sentido da sua vida, mesmo estando em vésperas da morte. Incitou-o até, de alguma maneira, à leitura da obra de Tolstoi, A morte de Ivan Illitch.

A personagem de Tolstoi vive uma circunstância semelhante à do presidiário. Tempos depois, Mitchell foi conduzido à câmara de gás e a condenação foi executada. Lendo uma entrevista que concedeu ao Chronicle de San Francisco, alguns dias antes do cumprimento da sentença, podia-se perceber que a mensagem de Tolstoi havia sido captada por aquele homem, que, embora não tivesse podido evitar a condenação, pôde evitar recebê-la no meio do vazio e do desespero[1].
[1] Frankl, Viktor E., Psicoterapia y Humanismo, México, Fondo de Cultura Económica, 1984.

Da biblioterapia ao bibliodiagnóstico

Basicamente, a partir da abordagem logoterapêutica e das ideias mais ou menos sistemáticas de outros autores, propõe-se a chamada biblioterapia, com a intenção de utilizar o livro como recurso terapêutico.

Considerando o valor testemunhal e referencial do livro, podemos facilmente compreender que a sua implementação terapêutica pode ser válida e efectiva. Muitas vezes, como se tem dito, actua de maneira espontânea, quando o paciente chega à consulta motivado pelo que leu ou está a ler.
Mas, então, se falamos de biblioterapia, não poderíamos falar de bibliodiagnóstico? Sim. De facto, o livro também pode ser usado como recurso de diagnóstico. Não podemos, obviamente, estabelecer convalidações estatísticas nem pautas psicométricas, mas sim compreendê-lo como um recurso projectivo ao serviço do diagnóstico.

Como método de conhecimento do paciente, não obedece, decerto, a parâmetros convencionais, mas apresenta-se como excelente recurso para o conhecimento intuitivo do outro. “Intuitivo” significa que se pode praticar um minucioso processo de observação das respostas do paciente à narrativa, isto é, pode observar-se os seus comentários a respeito do conteúdo, assim como as suas mudanças durante a leitura, tanto quanto as conclusões a que chega.

Dever-se-á, de acordo com cada caso, escolher a narrativa que mais se adapte às necessidades do diagnóstico e trabalhar o conjunto das respostas obtidas. Desde já, assim como a biblioterapia se reconhece integrada, como técnica, num conjunto terapêutico, actuando somente em conjunção com outros modos de abordagem, também o bibliodiagnóstico será apenas concebido como mais uma técnica projectiva em colaboração com outras, integradas em função de um processo de psicodiagnóstico.

Exemplos

Apresento a seguir uma série de histórias através das quais pretendo exemplificar o uso concreto da palavra escrita com uma finalidade terapêutica. Trata-se de três casos em que integro a utilização da biblioterapia na prática individual ou grupal, de acordo com a dinâmica própria de cada circunstância. Vejamos.

Caso 1: Trata-se de João, um homem de 37 anos, casado com Maria, de 32, e pai de dois filhos, Roberto, de 6 anos, e Fernanda, de 3. João é funcionário público. O relato da sua vida está repleto de factos dramáticos, como a morte prematura da mãe, o falecimento posterior do pai, as suas dificuldades para ser alguém na vida, até conhecer Maria, tendo a situação, a partir daí, começado a tornar-se um pouco melhor. Nasceram filhos sadios, e agora vive as dificuldades económicas de todo o empregado cujo salário não é suficiente para uma vida tranquila. João começou então a assumir perante a vida uma atitude francamente pessimista. Vive num estado de derrotismo, agravado, obviamente, pelas suas actuais condições. Muito embora seja verdade que o dinheiro é escasso e que a realidade não corresponde nem um pouco às suas pretensões, pode-se dizer que a vida de João é uma vida feliz. A mulher ama-o, os filhos são saudáveis e ele tem a possibilidade de trabalhar e de manter a casa dignamente. De qualquer maneira, a sua atitude transforma-lhe a vida numa pesada carga. A sensação de vazio apodera-se dele com frequência, acompanhada de estados de angústia e de desânimo.

João comenta que um domingo, seguindo uma sugestão minha, foi com a família ao parque que fica perto de uma auto-estrada. Era um dia soalheiro e muita gente já se encontrava no local. Enquanto Maria caminhava com Fernanda, João começou a jogar a bola com Roberto. Todos se divertiram muito, com excepção, é claro, de João. Enquanto jogava com Roberto, olhava para toda aquela gente… pareciam tão felizes, como se não tivessem problemas… tive de fazer um grande esforço para sair com as crianças e com Maria e, acredite, eles divertiram-se bastante, mas eu continuei a sofrer por dentro… Perguntava‑me como é que aquelas pessoas faziam para não terem problemas… O discurso de João era, evidentemente, tão pessimista como sempre. Continuava a dar às circunstâncias um carácter determinante, como se estas o obrigassem a viver mal, a sofrer. A certo momento faz o seguinte comentário: Sabe que… eu estava a olhar para as crianças que faziam papagaios de papel e pensava nos papagaios de papel… lá em cima, livres, fazendo o que querem… como seria lindo ser um papagaio de papel, ou um avião, ou um pássaro, e poder voar, ignorar os problemas e ser livre… Naquele preciso momento recordei uma canção escrita por um grande amigo meu, um poeta popular brasileiro[2], que se chama Pipa[3]. Disse então a João que queria que ele ouvisse aquela canção. A melodia é muito simples, mas muito bonita, e a letra, em português, mesmo para quem, como eu, fala espanhol, é fácil de entender. João ouviu-a duas vezes e logo lhe dei a letra por escrito. Eis o final da canção:

… voar com liberdade…

ser livre é um desafio

quando se tem a vida

sempre presa por um fio.

João leu e releu a letra várias vezes. Em determinado momento, olha para mim e diz‑me: Sabe que é certo… nunca havia pensado que o papagaio de papel, que voa tão alto e parece tão livre, está preso… a letra é boa… A partir dali começámos a reflectir juntos sobre o carácter condicionante – não determinante – das circunstâncias e do espaço de liberdade que sempre podemos encontrar mesmo na situação mais adversa. Abordámos a sua tendência para se sentir “uma vítima” e propus-lhe que assumisse a atitude de protagonista da sua própria existência. Finalmente, João pediu-me que lhe desse a letra de Pipa. Obviamente, a minha ideia era que ele a levasse. Na semana seguinte, quando nos reencontrámos, comentou comigo que a pôs debaixo do vidro da sua mesa-‑de-cabeceira, e que todas as manhãs a lê quando se levanta. Aprendeu a melodia, e durante o dia assobia‑a, muito especialmente quando sente que o pessimismo está a surgir, e parece‑lhe que ela é muito útil para o afastar. Reflectimos sobre isso e descobrimos juntos que a leitura de Pipa pela manhã dá-lhe algo de parecido com uma “primeira certeza” ou, como ele prefere dizer, “a certeza do dia”, que lhe recorda que ele pode ser protagonista e não vítima daquilo que lhe acontecer nesse dia que se inicia.

Passadas várias semanas, João faz-me o seguinte comentário: Domingo passado voltei ao parque com Maria e as crianças e estivemos muito bem, porque estava um dia bonito e cheio de gente e, sabe? Comecei a pensar nos papagaios de papel que estavam a subir e dei-me conta de uma coisa que não me havia ocorrido. Os papagaios de papel não somente se movem com liberdade apesar do fio que os amarra, como diz a canção, mas também, se o fio for cortado, já não podem voar… Então pensei naquilo que tantas vezes o senhor me disse acerca de descobrir o sentido das coisas e de dever perguntar‑me mais sobre o para quê do que sobre o por quê de tudo isto… e creio que neste Domingo me dei conta do que o senhor me queria dizer… Se não me tivessem acontecido as coisas que me aconteceram, eu não seria talvez o que sou agora. Ou se tivesse muito dinheiro, não desfrutaria tanto da companhia das crianças, porque com o dinheiro acreditaria poder dar-lhes tudo de que necessitam, não como agora, que não posso dar‑lhes um computador de presente para elas brincarem sozinhas ou outra coisa do género; faço por brincar com elas, por sair com elas, nem que seja para jogar a bola no parque ou andar de bicicleta, é uma forma de estarmos juntos…

É evidente que João descobriu muitas coisas, e essa certeza com a qual começa cada dia tem vindo a permitir-lhe abrir-se a uma nova compreensão das circunstâncias, e modificar assim a sua atitude de vida, passando verdadeiramente de vítima a protagonista.

Caso 2: Neste caso, trata-se de um grupo; concretamente, de um grupo de jovens desportistas que formam uma equipa profissional. Sou chamado pelo técnico, porque ele detectou que o baixo desempenho da equipa se deve fundamentalmente mais a questões anímicas do que a aspectos ou falhas técnicas ou tácticas. Numa entrevista com a equipa, detectam-se sérios problemas no tocante à motivação, particularmente associados a uma auto‑estima muito baixa, um limiar muito baixo de tolerância à frustração, e uma vivência de medo no que respeita ao confronto com o adversário, que bloqueava sensivelmente os potenciais técnicos dos jogadores. Resumindo, a vivência da equipa era a seguinte: considerava-se muito fraca e, no momento de enfrentar a equipa rival, não confiava nos próprios recursos.

Numa das entrevistas, trabalhei com um conto de Mamerto Menapace que se chama Morrer num bando de perus. A narrativa é uma versão semelhante à tradicional história do patinho feio, mas conta a história de um condor que é criado por uma perua choca e que cresce “no bando de perus”, pensando que é um pequeno peru, e olhando com admiração o voo dos condores nas alturas. Assim, acaba “por morrer no meio do bando de perus”, quando na realidade havia nascido para ser aquilo que tanto admirava. Faz-se, evidentemente, um jogo de palavras, tirando partido da contundência das expressões “viver no meio do bando de perus” e “morrer no meio do bando de perus”. O director técnico da equipa havia-me adiantado que se tratava de um grupo com o qual era difícil discutir pormenores e manter reuniões de reflexão que durassem mais de 25 a 30 minutos. São rapazes que não estão habituados a isso: ao fim de 15 ou 20 minutos, dispersam-se e ficam muito inquietos, foi a apreciação com a qual antecipou o meu encontro com a equipa. Existe um preconceito quanto a alguns ambientes de desportistas profissionais, no sentido de que carecem de cultura, e também de interesse em adquiri-la. Mesmo assim, levou-se por diante a experiência, decerto inédita para este grupo, de os reunir nos momentos anteriores a uma partida e ler-lhes um conto. A princípio, quando iniciámos a actividade, houve algumas brincadeiras entre eles e uma certa resistência diante desta iniciativa, que parecia um “dever de escola” ou uma “infantilidade”. Mas, depois de iniciada, todos a aceitaram e responderam ao apelo com atenção e sentido de participação numa actividade que acabou por estender-se ao longo de 80 minutos. Terminada a leitura, houve um momento de silêncio e logo se iniciou a reflexão, breve, sobre a semelhança da narrativa com a sua própria história. Este conto tornou-se para a equipa uma espécie de palavra de ordem tácita ou de “bordão”: Não morrer no meio do bando de perus. A partir dali, começaram a aparecer diferentes elementos que rapidamente permitiram ao grupo prosseguir o trabalho sobre essas questões, modificar a sua atitude e renovar a disposição para o jogo, levando a uma sensível melhoria no seu rendimento. Também neste caso a biblioterapia abriu terrenos e estimulou o grupo de maneira efectiva, de modo que pudesse protagonizar uma modificação necessária para o seu crescimento individual e grupal.

Caso 3: Trata-se da utilização da biblioterapia num workshop de convivência. Ele faz parte de uma série de actividades que são realizadas com um grupo de aposentados recentes e pessoas que estão próximas da aposentação. Eles receberam, através de diferentes palestras e apresentações, assessoria previdenciária, legal e financeira. Mas ainda não enfrentaram o mais importante para eles neste momento: prepararem-se emocionalmente para viverem como aposentados, para encararem uma crise vital tão importante como a que surge nesta etapa da vida. Evidentemente, a chave para superar – ou começar a fazê-lo – o pico crítico (e também para o prevenir) é poder responder à pergunta: qual o sentido da vida a partir desse momento? E a resposta não pode ser obtida a partir da assessoria previdenciária, legal e financeira. É assim que se pretende mobilizar o grupo em torno da questão do sentido da vida, na nova etapa que para ele se inicia. Organiza-se este workshop em torno da leitura e posterior elaboração de um conto, Quebra-cabeças, escrito especialmente para ser utilizado em biblioterapia.

Reúne-se o grupo no salão onde habitualmente se realiza o ciclo de actividades. Os membros estão dispostos em círculo e a tarefa é-lhes apresentada. A ordem recebida indica que se trabalhará sobre a leitura de uma história que reflecte a atitude de diversas personagens diante de uma determinada situação. Eles deverão ouvir a história com atenção. Lê-se então Quebra-cabeças. Terminada a leitura, faz-se um momento de silêncio, e pede-se que resumam numa frase as reflexões que a história suscitou. Recolhem-se os cartões com as frases que escreveram, que são em seguida repartidas entre os participantes. Cada um receberá então a frase escrita por outro, desconhecendo o autor. Se algum deles, por acaso, recebesse a sua própria frase, deveria devolvê-la e pegar noutra. Dá-‑se um momento para que cada um leia interiormente e procure compreender a frase que recebeu. Posteriormente, inicia-se a reflexão em grupo em torno das frases e das reflexões que forem surgindo.

A mobilização gerada pela história reflecte-se naquelas frases que manifestam temores, fantasias, decepções, ilusões, projectos, expectativas, desesperança, desorientação, negação, depressão, optimismo… isto é, um leque de alternativas que, no seu conjunto, revelam o panorama complexo que o aposentado enfrenta. A elaboração em grupo, a possibilidade de empregar essas frases num âmbito diferente, apresenta-se como uma boa oportunidade para começar a encarar esse panorama com maior certeza. A mobilização surgiu a partir da introspecção propiciada pela leitura do conto. Conseguimos identificar-nos com as personagens e descobrimos diferentes opções para encarnar ou interpretar os caminhos de resolução da crise que estava a ser vivida.

Poderíamos citar muitíssimos casos de aplicação da biblioterapia, tanto na modalidade individual como na de grupo, tanto na prática psicoterapêutica como na psicoprofilática.

E, do mesmo modo, é válida a utilização deste recurso na prática docente. Muitas vezes acontece que certas ideias teóricas que o aluno não consegue assimilar, podem ser integradas a partir de uma narrativa de ficção, que mostra de um modo mais imediato o seu conteúdo. Refiro-me à utilização do conto de Edgar Allan Poe, William Wilson, como excelente recurso para estudar e compreender os conceitos: consciência/inconsciência, por exemplo.

Quebra-cabeças, de Claudio García Pintos

Quebra-cabeça apresenta-nos a história de quatro tolos que, perante a necessidade de atravessar um bosque, assumem atitudes diferentes. Basicamente, propõe-se a escolha da atitude a assumir quando temos de enfrentar uma crise, representada pelas dificuldades oferecidas pela dita travessia, e o recurso a dois elementos fundamentais: a descoberta do sentido (aqui tratado como “princípio de coerência” – é o botão que põe de pé o quebra-cabeças) e a coragem que exige de nós o assumir da responsabilidade em seguir o caminho proposto.

Quebra-cabeças

Era uma aldeia de tolos. Uma aldeia habitada por pessoas habituadas a viver tolamente, fugindo aos problemas, não resolvendo situações, mantendo relações superficiais e passageiras… Ninguém conhecia bem o seu vizinho e alguns nem sabiam se alguém vivia na porta ao lado.

Um dia, um grupo de quatro tolos organiza uma excursão. Tratava-se de um passeio pelo bosque que ficava próximo da aldeia. Assim, sem previsões nem provisões, os tolos saíram da aldeia. Chegando à entrada do bosque, descobriram que tinham diante dos olhos a obscura maravilha de sendas caprichosas e galerias desenhadas por árvores de frondosa presença e húmido acolhimento. Escolheram uma clareira como entrada e introduziram-se nessa cativante imagem.

Uma vez dentro, facilmente foram enganados por uma manhã maravilhosa, que confundiu os seus passos e os fez perder a referência da entrada escolhida. Sem saberem que decisão tomar, seguiram em frente, esperando encontrar a qualquer momento uma saída. Cedo começaram a enfrentar riscos de todo o tipo. Um deles começou a perceber sons, ruídos estranhos e desconhecidos. Pensou que se tratava dos duendes do bosque, fantasmas que habitavam aquela húmida escuridão e perseguiam os intrusos que ousavam invadi-la. Sentiu medo, vacilou um momento, quis fugir, mas logo reagiu: tapou os ouvidos com as mãos e ficou tranquilo, porque, assim pensou, os duendes deixariam de existir.

Outro descobriu entre as sombras cerradas do bosque presenças estranhas que o seguiam e o olhavam. Eram curiosos seres cujas formas se modificavam à medida que ele se aproximava ou se afastava deles e que surgiam da escuridão como personagens ameaçadoras. Também sentiu medo. Quis fugir desse círculo no qual fora apanhado pelas sombras e pelos seus temores. Logo reagiu e, tal como aconteceu com o outro tolo, descobriu o que fazer: tapou os olhos com as mãos e ficou tranquilo, porque, assim pensou, as sombras ameaçadoras deixariam de existir.

O terceiro tolo, que gostava de cantarolar enquanto caminhava, começou a sentir personagens invisíveis que, com vozes estranhas e lânguidas, entoavam cantos de melodia envolvente. Sentiu medo. Quem seriam essas personagens que repetiam invariavelmente os seus cantos com um tom que o assustava, com uma sonoridade inquietante? Quis fugir delas, mas não conseguiu. Para onde ia, elas iam também. E tal como aconteceu com os tolos anteriores, tomou uma decisão: tapou a boca, parou de cantar e ficou tranquilo, porque, assim pensou, as vozes ameaçadoras deixariam de existir.

O quarto tolo, que gostava de caminhar e de percorrer todos os atalhos do bosque, cedo descobriu que, por mais que caminhasse, chegava sempre ao mesmo lugar. Acelerava o passo, como se isso lhe permitisse sair mais depressa do labirinto verde-escuro em que se havia metido. Mas de nada adiantava; por mais que corresse, chegava sempre ao mesmo lugar. Sentiu-se apanhado pela própria impossibilidade de encontrar a saída. Quis fugir, mas não pôde. Para onde quer que caminhasse, os atalhos levavam-no, invariavelmente, ao mesmo lugar. Logo reagiu, e tal como aconteceu com os outros três tolos, descobriu o que tinha a fazer: ficou parado, porque, assim pensou, os caminhos não se cruzariam, impedindo-o de sair do lugar. Mas sentiu que não tinha resolvido o problema.

Permaneceu ali parado durante um momento… e também não tinha saído do labirinto, que continuava a existir em seu redor, cerrado, enigmático, e verde-escuro. Pensou um instante e disse para consigo que, se existia uma entrada, devia existir uma saída. Só a encontraria se a procurasse. E, apesar do medo, decidiu procurá-la. Pegou numa pedra, amarrou-a a uma corda que fez com raízes e lançou-a para o meio da espessura verde do bosque. Seguindo a corda como se fosse um atalho, caminhou de maneira pausada, mas decidida.

Assim, inventando atalhos através do verde espesso do bosque, chegou à presença do duende do bosque. Era uma pequena e simpática personagem, que o recebeu afectuosamente. O tolo assustou-se, mas não tentou fugir dele, porque percebeu que seria bem recebido. O duende guiou-o até à saída mais próxima do bosque. Ao chegar lá, deparou-se com uma curiosa montanha formada por milhares de peças de um quebra-cabeças gigante.

Então, o duende disse-lhe que a condição para encontrar a única saída que o bosque tinha era reconstruir inteiramente a figura do quebra-cabeças. O nosso tolo sentiu-se decepcionado por ter de realizar tão árdua tarefa, tendo em conta aquela enorme quantidade de peças. Mas o duende do bosque animou-o dizendo que devia tentar, ou então voltar para o centro do labirinto, e ficar lá parado, como já havia feito antes.

O duende deixou-o sozinho para que decidisse o que devia fazer e, desejando-lhe sorte, perdeu-se na espessura do bosque. O tolo deu início à tarefa. Trabalhou muitas horas, tentando reconstruir a figura em questão. Teve de enfrentar desânimos e frustrações. Foi relativamente bem sucedido e conseguiu reconstruir uma parte da figura. No decurso das suas tentativas, encontrou no meio da montanha uma peça curiosa. Era semelhante às demais, mas tinha uma particularidade: no canto da peça havia alguma coisa que se parecia com um botão vermelho. Ele deixou-a de lado e continuou a tentar. Passado um momento, voltou àquela peça… e como se alguma coisa dentro dele o impelisse, pressionou o botão.

No mesmo instante, presenciou um facto maravilhoso: em simultâneo, todas as peças começaram a juntar-se automaticamente, de maneira precisa e muito cuidadosa, até formarem a imagem perfeita e acabada do quebra-cabeças. Ainda sob o efeito da surpresa, percebeu que se tratava do desenho de uma porta tão vividamente pintada que parecia real. Tão real parecia que teve vontade de rodar o puxador e de a abrir. Foi o que fez, e a sua surpresa tornou-se ainda maior porque a porta se abriu, e ele pôde, finalmente, sair do bosque.

Penetrou assim numa paisagem espectacular, intensa, luminosa, com vales regados por sinuosos regatos e enfeitados por pomares coloridos, percorridos por pessoas que cantavam sem tapar a boca, cujos olhares possuíam um brilho especial que não ocultavam, e que desfrutavam de cada som, cada canto, cada silêncio. E enquanto ele se abria ao esplendor daquela nova paisagem, certo de nunca mais regressar à aldeia de onde havia saído, os outros tolos permaneciam com os olhos tapados e a boca fechada, acreditando tolamente que, assim, os fantasmas do medo e do temor deixariam de existir.

Papagaio de papel de Luiz Falcão

Papagaio de papel (Pipa, em brasileiro), do poeta brasileiro Luiz Falcão, apresenta‑nos, de uma maneira muito simples e bela, a vivência da liberdade. A imagem de um papagaio de papel a brincar no ar, a fazer piruetas vistosas e coloridas, associa-se imediatamente à ideia de liberdade. Voar, subir, chegar onde os olhos não abarcam, são circunstâncias que muitas vezes percebemos como privilégios dos pássaros ou dos papagaios de papel, especialmente quando nos sentimos prisioneiros de diversas circunstâncias da vida.

Nessa busca de liberdade, muitos de nós assumem o papel de vítima, acreditando que, em certas situações, ser-se livre é difícil. Mas a canção chama a nossa atenção para a própria condição do papagaio de papel, que não deixa de ser livre, não se submete nem assume o papel de vítima, apesar de estar preso a um cordel. E deixa-nos a sua mensagem: ser‑se livre é um desafio quando se tem a vida sempre presa por um fio. Da nossa atitude depende, pois, sermos vítimas ou protagonistas das circunstâncias, descobrirmos a verdadeira liberdade ou desistirmos da sua busca.

Pipa

Pipa vai, pipa vem,
voa, voa, me eleva também.
Pipa vai, pipa vem,
voa, voa até onde os olhos não vêem.

Fazendo piruetas no céu,
Lindas, tão coloridas, de papel.
Voar por toda parte.
Um jogo feito arte.
No ar, sempre alegre como um passarinho.
Voar em liberdade.
Ser livre é um desafio.
Com a vida sempre presa por um fio.

Pipa vai, pipa vem,
voa, voa, me eleva também.
Pipa vai, pipa vem,
voa, voa até onde os olhos não vêem.

Última página

Em última análise, o livro como recurso terapêutico realiza um serviço formidável ao despertar no paciente uma resposta operacional pessoal e significativa perante a situação crítica que o inibe de decidir e actuar conscientemente. A palavra escrita, com toda a riqueza encoberta do “não-escrito”, transforma-se em presença permanente, que assume características dinâmicas especiais:

a) o texto interage connosco; de certo modo, poder-se-ia dizer que nos ouve e nos fala, dialoga incondicionalmente com o leitor;

b) no contexto desse diálogo, não deixa de nos dar respostas, não se furta a fazê-lo;

c) compartilha os nossos próprios pensamentos.


Várias vezes se apresentou o livro como uma boa companhia; podemos encará-lo também como uma boa companhia terapêutica, que nos acompanha na busca de respostas novas para situações de vida.

Desse modo, bem poderíamos afirmar que o livro, na sua finalidade biblioterapêutica, nos revela tanto quanto nos rebela. Quero dizer que, num primeiro momento, faz-nos ver, ilumina uma situação, revelando-nos aspectos, matizes, circunstâncias, alternativas, caminhos, que até então não eram vistos nem apreciados por nós.

Uma vez iluminado o panorama, sacode-nos, estimula-nos e incentiva as nossas genuínas possibilidades de elaborar uma resposta própria e significativa, rebelando-nos no tocante à situação a ser resolvida, incitando-nos a sair do desespero, da confusão ou da resignação, e actuando em função de uma resposta nova e possível.

Quando esta revelação e esta rebeldia se conjugam, o indivíduo apropria-se da situação de vida que tem diante de si e fica em posição de resolvê-la significativamente. Esse objectivo é, seguramente, “o objectivo” fundamental da psicoterapia, isto é, que o indivíduo acabe por ser cada vez mais ele próprio.

O livro não é a única alternativa para o conseguir, mas a biblioterapia oferece-se como espaço nobre para que todas as pessoas possam acabar por fazer da sua biografia uma história dotada de sentido.



*** O autor, Cláudio García Pintos é um estudioso argentino, cujo núcleo de interesses se prende com a Logoterapia: uma terapia centrada no sentido, inaugurada pelo médico vienense Viktor Emil Frankl (1905-1997). A Logoterapia e Análise Existencial constitui a terceira escola vienense de Psicoterapia, após a Psicologia Freudiana e a Psicologia Individual de Adler, com marcadas vertentes humanística e antropológica.


[2] Trata-se de Luiz Falcão, um carioca que vive em Florianópolis, autor de numerosas peças.
[3] Papagaio de papel.

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