domingo, maio 20, 2007

A paixão de ler - François de Closets

François de Closets
A felicidade de aprender e como ela é destruída
Lisboa, Ed. Terramar, 2002
Excertos adaptados




Foi o mais inesperado e imprevisível dos best-sellers de 1992. Um caso editorial – seiscentos mil exemplares vendidos no conjunto – que deixou de boca aberta a sua editora, as prestigiosas edições Gallimard. Regra geral, números dessa grandeza só são atingidos por romances ou, então, por sagas repletas de paixões, aventura, de História e personagens. E se na sua capa aparecer, qual diamante que realça a veste, o nome de um autor de sucesso, tanto melhor.

No caso em apreço, nenhum desses elementos esteve presente. Trata-se de um livro de reflexões tiradas da experiência, redigido por um professor de Línguas e de Literatura que procura apenas e tão-só suscitar nos seus alunos a paixão da leitura. Em suma, um pequeno tratado de iniciação à arte de ler, de que qualquer editora, interessada em não abrir falência no semestre seguinte, teria feito uma edição de cinco mil exemplares, esperando vender uns três mil.

O próprio Daniel Pennac, autor do pequeno livro, confessa que, por mais de uma vez, esteve para desistir, tal era a evidência do que tinha para dizer. Temia estar a forçar portas há muito já abertas. Felizmente, conseguiu ultrapassar esse temor e publicou Comme un Roman [Como um Romance], mostrando mais uma vez, que, regra geral, as ideias que não parecem exigir explicitação que são a melhor forma de fugir aos preconceitos.

Em vez de ter redigido mais um tratado árido de pedagogia literária, Pennac escreveu um texto jubiloso e irónico, trabalhado por uma espécie de suspense que se mantém do princípio ao fim. Comme un Roman não era um título usurpado. Pelo contrário, qualquer leitor, fosse ele aluno, professor ou pai, saía enriquecido da sua leitura, sem nunca se ter perdido pelo caminho.

O objecto-mistério dessa palpitante caça ao tesouro é o livro. Temos, de um lado, os adultos que gostariam de atrair as jovens gerações para a prática da leitura; e, do outro, os adolescentes, filhos dos subúrbios e da televisão, tão pouco preparados para ler Ronsard como para dançar as valsas vienenses. E a história começa logo à nascença. «O drama é que ele não lê.»

Os adultos, julgando-se invisíveis, observam e inquietam-se, pressionam e têm pressa, e quanto mais importunam a sua querida prole, mais esta arrasta os pés e «amarra o burro». A escola, que deveria vir em apoio dos pais, ainda faz pior. Sem sequer se darem conta do que estão a fazer, pais e professores, coligados numa santa aliança, alteram as regras do jogo e transformam a prática da leitura numa corrida ao diploma.

O facto é que os estudantes, os craques e os cábulas, nunca mais se decidem a desligar os auscultadores e a mergulhar na leitura. Os pais vêem a vida a andar para trás. O professor, como é óbvio, queixa-se e lamenta-se, até que a sua mulher, que provavelmente é mãe e tem filhos a estudar, resolve dizer-lhe umas tantas verdades. É esse o momento capital do livro.

«Do que tu estás à espera é que eles te entreguem boas fichas de leitura sobre os romances que tu lhes impinges, que "interpretem" correctamente os poemas da tua escolha, que no dia do exame analisem com subtileza os textos da tua lista, que "comentem" judiciosamente ou "resumam" inteligentemente o que o examinador lhes puser debaixo do nariz... Mas a verdade nua e crua é que nem o examinador, nem tu, nem os pais dos teus alunos estão particularmente empenhados em que os seus filhos, de facto, leiam. Repara, também é verdade que não desejam o contrário. O que eles querem é que os filhos se desenvencilhem nos estudos. Tudo o mais é conversa!»

Estas evidências poderiam ter levado o nosso autor a recuar e a voltar à prática habitual do seu ofício de professor. São evidências que, por partirem de uma observação exacta do estado de coisas, ainda mal foram ditas e já todos se aperceberam de que pensam exactamente o mesmo, excepto que não tinham ousado confessá-lo. Que os pais que preferem um filho leitor a um filho diplomado levantem o dedo! Não tenham vergonha! Na hora de admitir alguém, qual é o empresário que se mostra sensível à prática apaixonada da leitura?

Chegou-se a um ponto tal, que os adolescentes, saturados dos exercícios literários, estão convencidos de que a leitura é, antes de mais e sobretudo, uma inexcedível maçada.

E como acaba o livro? Em princípio, eu não deveria dizer como. No entanto, dado o êxito enorme de Comme un Roman, toda a gente o leu e sabe como acaba. O nosso professor começa por desistir do «ensino da Literatura», pega em romances, em verdadeiros romances de hoje, desses que se encontram à venda em qualquer livraria, que contam histórias, verdadeiras histórias, e decide lê-los em voz alta na sua aula, pelo prazer de ler, é certo, mas também para ver quais seriam as reacções dos alunos. Estes, apesar de rebeldes, deixar-se-ão progressivamente enfeitiçar como crianças que pedem uma história antes de adormecer.

A breve trecho – mas também pode ser muito mais tarde –, vão querer saber quem é o autor, se tem outros livros, quererão ler outros romances, começarão a interessar-se pelos personagens, e assim sucessivamente. O facto é que, mais uma vez, a magia do livro opera e, quase sem darem por isso, vão dar consigo próprios a voltar as páginas, a descobrir «esse vício impune – a leitura».

Sinal de que é chegado o momento de se falar de literatura. Eis por que motivo os vossos filhos não lêem, eis como poderão voltar a ler. Happy end
[1].
[1] Em inglês no original (N. T.)

Pennac, como se vê, está obcecado pelos «que não lêem».

Não alimenta qualquer ilusão quanto aos eventuais benefícios que possam tirar do sistema educativo: «Os mais espertos aprenderão, como nós, a andar à volta da literatura. Serão brilhantes na arte inflacionista do comentário (leio dez linhas, escrevo dez páginas), na prática redutora da ficha (percorro quatrocentas páginas, sintetizo-as em cinco), na caça à citação judiciosa nos alfarrábios de cultura congelada, disponíveis em todos os vendedores de sucesso, saberão manejar como ninguém o escalpelo da análise literária e tornar-se-ão peritos em navegar sabiamente entre os "melhores excertos", navegação essa que os conduzirá seguramente a passar com êxito o exame final dos estudos secundários, a obter uma licenciatura e, quem sabe, a fazer até um doutoramento... não sendo, no entanto, garantido que os deva ao amor do livro.»

Pergunta: que sentido pode ter um saber literário, por mais erudito que seja, que não conduza à paixão pela leitura?

Conhecer antes de estudar

Como explicar o sucesso obtido junto dos leitores por Comme un Roman? Pela simples razão de que o livro explicita o que eles próprios sentiam confusamente sem nunca terem ousado dizê-lo: «É uma estupidez ensinar Literatura a jovens que nunca lêem um livro!» Eis o que teriam gostado de dizer!

Imaginemos um pai, entretido a ler um livro, que vê o filho aflito, a braços com um comentário literário, à procura numa passagem de Balzac dos «índices lexicais, das estruturas gramaticais, do sistema enunciativo e do esquema narrativo», pai esse, aliás, que nunca viu o filho a ler seriamente um livro, nem sequer um livro policial... É pouco provável que esse pai não se interrogue sobre o que está a ver.

Como é possível que uma mesma arte (a escrita), um mesmo objecto (o livro), uma mesma actividade (a leitura) sejam, para um, fonte de prazer e, para o outro, causa de um imenso tédio? Que sentido faz impor aos jovens uma utilização segunda e arrevesada do escrito, quando existe uma outra, absolutamente natural e extremamente gratificante, a leitura, de que se servem tão pouco?

Deste ponto de vista, o que nos é dado constatar, por exemplo, ao nível da educação? Assistimos precisamente a um movimento – fruto de uma admirável obstinação –, que, em vez de promover um contacto directo, caloroso, sensível com as matérias de estudo, persiste em fornecer grandes quantidades de definições.

Felizmente que os professores não se contentam em preparar robôs capazes de passar o exame final. Raoul Pantanella exprime bem essa frustração. Diz ele:

Ser culto é, assim, sinónimo de ter encontrado textos e de com eles ter vivido uma história de amor... Facultar à criança textos para amar, textos para serem vividos...
E se, para começo de conversa, as incentivarmos ao massacre analítico dos textos seleccionados e fragmentados, as lançamos numa furiosa vivissecção literária, sob a forma das eternas explicações, leituras dirigidas, metódicas, dos comentários de circunstância, etc., impedimo-las de realizar uma experiência íntima, de pôr a funcionar a imaginação, o maravilhoso, que toda a narrativa, que todo o texto ficcional veicula.
Coloca-se a charrua teórica antes da emoção, impedindo-a de abrir o seu próprio rego! Para cultivar os seus alunos, o professor de literatura deve provocar neles uma espécie de paixão secreta, o prazer de ler sem qualquer finalidade utilitária. Só depois poderão começar a pensar no que isso representa e como isso se faz.


É ponto assente entre os professores de Literatura – entre aqueles que não só a amam como têm o desejo de a transmitir – que os métodos actuais estão totalmente desfasados das mentalidades adolescentes. O mal-estar está de tal modo difundido que as muitas cartas que Daniel Pennac recebeu dos colegas não pretendiam criticar o iconoclasta, antes manifestar-lhe plena concordância com as ideias que defendera.


Em contrapartida, a corporação dos professores de Letras, com os seus corpos constituídos, os seus sindicatos, as suas associações e, sobretudo, a inspecção-geral, mostraram uma atitude mais do que reservada. O diagnóstico formulado por Comme un Roman, caso fosse tomado em consideração, desencadearia a prazo, umas após outras, uma série de modificações de fundo, para as quais os responsáveis do nosso ensino não estão preparados.

Como obter, ao mesmo tempo, o domínio da língua e da expressão, o conhecimento das obras literárias e o amor pela leitura? O sistema actual teima em encarar estes objectivos como complementares quando aquilo a que assistimos é à sua oposição mútua, e que misturá-los é a melhor maneira de destruir com uma das mãos o que com a outra se construiu. Não se pode impunemente desmembrar textos, desarticulá-los, procurar na língua do século XVII o modelo da língua falada no século XX ou reduzir as obras ao que «sobre elas se deve pensar», sem estar, ao mesmo tempo, a desenhar tendências nefastas a longo prazo.

Temos, no entanto, de admitir que não é fácil pôr de pé um ensino da língua. Se o fosse, há muito que seria conhecida a receita do milagre. O facto é que a explicação tradicional do texto não é mais estimulante do que a leitura metódica. Na realidade, qualquer exercício, desde que normalizado, tende a esterilizar a sensibilidade e a imaginação. Cria no aluno uma certa obsessão pelos resultados (exigidos e a obter) que, progressivamente, se centra sobre os métodos que, a prazo, se transformam num receituário, numa listagem de receitas.

O texto transforma-se em pretexto, perdendo a sua função primeira, ou seja, a transmissão de um sentido, de uma emoção e de uma história.

A introdução de um método representa um risco – a de provocar um corte definitivo com a literatura viva. Por outro lado, a recusa de um método impede, a prazo, que se entre na intimidade de um discurso. A bissectriz passaria, algures, pela utilização de um método que, além de evitar cuidadosamente os seus próprios efeitos perversos subjacentes, fizesse, sobretudo, descobrir o prazer de manejar a língua.

Tem-se, por vezes, a impressão de que o recurso sistemático aos exercícios é uma forma de comodismo pedagógico (na medida em que ensinar, avaliar e dar notas se torna mais fácil), mais do que uma resposta adaptada ao despertar da sensibilidade ao literário. Esse comodismo não seria criticável se, no cômputo final, os jovens tivessem adquirido o gosto pela leitura. Infelizmente, nem isso acontece.

Os novos alunos

As objecções metodológicas de Georges Lanson mantêm-se, pois, pertinentes. Razões de ordem cultural e sociológica conferem-lhes, aliás, uma actualidade acrescida. No princípio deste século, o Ensino Secundário estava, no essencial, reservado aos filhos da burguesia. O professor de línguas e de literatura dirigia-se a alunos que haviam crescido num meio onde a cultura literária era omnipresente. Livros e jornais faziam parte do quotidiano, numa época em que a vida privada ainda não fora invadida por altifalantes e ecrãs.

Toda a família lia. Toda a gente falava do que andava a ler. As pessoas incitavam-se mutuamente à leitura. É verdade que essa prática era demasiado convencional, conformista e cloroformizada, relativamente às próprias obras, mas constituía uma boa entrada na matéria.

Desde muito novas, as crianças aprendiam de cor poemas e fábulas. Em seguida, vinham as Humanidades – corpo central do ensino que relegava para a periferia as demais matérias. Ao entrar no liceu, a leitura, em particular a leitura dos clássicos, já era um hábito bem enraizado, e a literatura, sob as suas diferentes formas, uma presença familiar.

Era nesse momento que o professor dava início ao estudo da história literária e das diferentes obras de referência. Se Lanson formulou as suas objecções, no contexto que referimos, considerando que os alunos de então não tinham bases bastantes para abordar a História da Literatura, o que diria ele hoje?

As turmas de que fala Daniel Pennac são formadas por adolescentes que não receberam na família qualquer iniciação literária. Além disso, vivem no pânico de um eventual insucesso escolar: «… na realidade, não apreciam os livros. Há vocabulário a mais, nos livros. Há também páginas a mais. Em suma, há livros a mais. Livros? Não é coisa de que se goste por aí além».

Claro que continuam a existir alguns estabelecimentos de ensino à antiga, boas escolas burguesas onde as crianças, bem preparadas pelas famílias, vêm para aprender como antigamente. A tendência, no entanto, é a de se tornarem uma excepção (e de serem desesperadamente procurados pelos pais!). E, depois, há os outros, todos os outros estabelecimentos, dos menos maus aos piores, confrontados com uma população totalmente diferente. Se, noutros tempos, estava reservado a uma minoria, o Ensino Secundário tornou-se a escola de toda a gente.

Neste novo contexto, os professores estão perfeitamente conscientes de que, no processo de aquisição de uma cultura literária, deixou de haver qualquer elo de continuidade entre a escola e as famílias. A bem dizer, deixou de haver qualquer patamar – partem, pois, do nível zero.

É totalmente impraticável apresentar o livro como um objecto de uso corrente e a leitura como uma prática habitual; ou falar de teatro como de um tipo de espectáculo bem identificado; ou empregar palavras como «clássicos» ou «românticos», como se de categorias bem definidas se tratasse, ou nomes como «Voltaire», «Rousseau», «Stendhal» como se fosse de gente conhecida de que se estivesse a falar. Por outras palavras, o professor tem de abrir os alicerces da literatura num solo desértico e pouco preparado para os receber.

Tem, sobretudo, de se bater contra uma cultura, a cultura dos jovens, que marginaliza a leitura e, mais ainda, a literatura. Os alunos vivem mergulhados num universo sonoro, rodeados de imagens, e não num universo do escrito. São constantemente solicitados por mil e uma distracções de fruição imediata que não exigem qualquer esforço, nenhuma iniciação.

Os promotores desse novo ensino tinham em mente favorecer as crianças dos meios populares ou, pelo menos, colocá-las numa posição de igualdade face aos filhos da burguesia. Os inquéritos revelam que aconteceu justamente o contrário. Podemos, pois, perguntar-nos o que terão ganho com essas inovações pedagógicas todos aqueles alunos (a grande maioria, aliás) que não são bons em Francês, que, na realidade, não são bons em nada – o que não quer dizer que não prestem para nada! – todos aqueles, enfim, que, com um ano de atraso e com muita indulgência à mistura, conseguem obter o seu diploma de estudos secundários. Avalia-se uma árvore pelos seus frutos.

Os professores universitários não se cansam de sublinhar a pouca preparação dos alunos que chegam à universidade. Um desses professores teve a ideia de colocar a esses estudantes uma série de perguntas sobre matérias que deveriam ter sido dadas no 2° e no 3° ciclos do Ensino Básico, perguntas, aliás, que seria vergonhoso colocar a um aluno que tenha acabado o secundário, perguntas, por exemplo, sobre a autoria das obras mais célebres.

As respostas obtidas foram uma autêntica catástrofe. Revelavam uma incultura dificilmente concebível, após tantos anos de estudos aturados e sancionados por um diploma. Os seus colegas, em contrapartida, não se mostraram surpreendidos. Há muito que sabiam que assim era. O professor guardou essas provas como se tratasse de um segredo da defesa nacional. «É evidente – dizia-me ele – que as não posso mostrar a ninguém.»

Danièle Sallenave não tem desses pudores cúmplices. Não tem qualquer pejo em denunciar as lacunas dos seus estudantes:

No primeiro ano e durante uma parte do segundo, sou uma espécie de Dr. Kouchner – um professor da brigada humanitária. Tenho à mão o meu estojo de primeiros socorros de sintaxe e de ortografia, os meus pensos de urgência, o meu quilo de datas históricas.
Chego com as conjunções, obviamente liofilizadas, e com a gramática em pó; relembro o que é uma concessiva e o sistema dos modos e dos tempos, recordo que INRI não é o segundo nome de Jesus, que Caim não era filho (ou irmão) de Édipo, e que o Confiteor não é uma especialidade regional.»[2]

Não há pedagogia, por mais milagrosa que seja, que consiga dar uma cultura literária a todos os jovens que vivem num mundo não literário. Partir da própria criança, procurar deliberada e obstinadamente despertar-lhe o interesse, terá sempre mais hipóteses de sucesso do que partir de esquemas epistemológicos. O melhor ensino é aquele que dura uma vida inteira, e não apenas o tempo de preparação de um exame.


[2] Danièle Sallenave, Lettres Mortes, op. cit.


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