domingo, maio 20, 2007

Leitura e liberdade - Alberto Manguel

Alberto Manguel
Uma História da Leitura
Lisboa, Ed. Presença, 1998

Excertos adaptados


Nos Estados Unidos foram promulgadas leis rigorosas que proibiam todos negros, escravos ou homens livres, de serem ensinados a ler. Estas leis vigoraram até meados do século XIX.

Durante séculos, os escravos afro-americanos aprenderam a ler em condições extraordinariamente adversas, arriscando a vida num processo que, devido às dificuldades com que se debatiam, demorava por vezes vários anos. Existem muitos relatos desta aprendizagem heróica. Belle Myers Carothers, de noventa anos – entrevistada pelo Projecto Federal de Escritores, comissão criada nos anos 30 para registar, entre outras coisas, as narrativas pessoais de antigos escravos – lembrava-se de aprender as primeiras letras enquanto tomava conta do bebé do proprietário da plantação, que brincava com blocos de letras. Ao aperceber-se do que ela estava a fazer, o proprietário pontapeou-a com a bota. Myers persistiu, estudando secretamente as letras da criança, assim como algumas palavras numa cartilha que tinha encontrado. Um dia, disse ela, «encontrei um livro de cânticos religiosos… e soletrei um deles. Fiquei tão feliz quando descobri que sabia ler que fui a correr contar a novidade aos outros escravos». O dono de Leonard Black surpreendeu-o uma vez com um livro e chicoteou-o tão fortemente que «venceu a minha sede de conhecimento e eu abandonei as tentativas nesse sentido até depois da minha evasão». Doc Daniel Dowdy recordava-se que «a primeira vez que se era apanhado a tentar ler ou escrever era-se chicoteado com uma chibata de pele, a vez seguinte com um azorrague de nove tiras e à terceira vez cortavam-nos a ponta do dedo indicador». Por todo o Sul da América era comum os proprietários das plantações enforcarem os escravos que tentassem ensinar outros a escrever.

Nestas circunstâncias, os escravos que quisessem alfabetizar-se eram obrigados a encontrar métodos de aprendizagem dissimulados junto de outros escravos ou de professores brancos dispostos a ensiná-los, ou inventando estratagemas que lhes permitissem estudar sem serem descobertos. O escritor americano Frederick Douglass, que nasceu escravo e se tornou um dos mais eloquentes abolicionistas do seu tempo, assim como fundador de várias publicações políticas, recorda na sua autobiografia: «O facto de ouvir com frequência a minha dona a ler a Bíblia em voz alta […] despertou-me a curiosidade em relação ao mistério da leitura e acicatou-me o desejo de aprender. Até àquela altura, eu nada sabia desta maravilhosa arte e a minha ignorância e inexperiência daquilo para que me poderia servir, assim como a confiança que tinha na minha patroa, deram-me a ousadia de lhe pedir que me ensinasse a ler […]. Em pouquíssimo tempo, com a sua bondosa ajuda, sabia o alfabeto e conseguia ler palavras de três ou quatro caracteres… [O meu amo] proibiu-a de me continuar a ensinar, [mas] a determinação que ele expressara em me manter num estado de ignorância apenas me tornou mais resolvido a procurar instrução. Na minha aprendizagem da leitura, por conseguinte, não tenho a certeza se não devo tanto à oposição do meu amo como à assistência bondosa da minha ama.»

Thomas Johnson, um escravo que veio a tornar-se um pregador missionário famoso em Inglaterra, explicou que aprendera a ler estudando as letras de uma Bíblia que furtara. Como o seu patrão lia todas as noites em voz alta um capítulo do Novo Testamento, Johnson pedia-lhe que lesse o mesmo capítulo várias vezes, até o saber de cor e ser capaz de encontrar as mesmas palavras na página impressa. Quando o filho do amo estava a estudar, Johnson sugeria ao menino que lhe lesse parte da lição em voz alta. «Deus nas Alturas», dizia Johnson para o animar, «leia isso outra vez», o que o menino fazia com frequência, julgando que o escravo estava a admirar os seus dotes de leitor. Graças à repetição, aprendeu o bastante para conseguir ler os jornais quando a Guerra Civil eclodiu e, mais tarde, fundou uma escola para ensinar outros escravos a ler.

Para os escravos, aprender a ler não representava um passaporte para a liberdade, mas antes uma forma de obter acesso a um dos instrumentos mais poderosos dos seus opressores: o livro. Os proprietários de escravos (à semelhança de ditadores, tiranos, monarcas absolutistas e outros detentores ilícitos de poder) tinham uma crença arreigada no poder da palavra escrita. Sabiam, muito melhor do que alguns leitores, que ler é uma força que requer pouco mais do que umas escassas primeiras palavras para se tornar avassaladora. Alguém capaz de ler uma frase é capaz de ler tudo; mais importante ainda, o leitor passa a ter a possibilidade de reflectir sobre a frase, de agir sobre ela, de lhe dar um sentido. «Uma pessoa pode fazer-se de desentendida com uma frase», disse o dramaturgo austríaco Peter Handke. «Afirmar-se com a frase em oposição a outras frases. Nomear tudo o que se nos atravessa ao caminho e arredá-lo. Familiarizar-se com todos os objectos. Tornar com a frase todos os objectos numa frase. Incluir todos os objectos na frase. Com esta frase, todos os objectos nos pertencem. Com esta frase, todos os objectos são nossos.» Por todas estas razões, a leitura tinha de ser proibida.

Como séculos de ditadores bem sabem, uma multidão de analfabetos é mais fácil de governar; já que a capacidade de ler não pode ser desaprendida uma vez adquirida, uma solução, à falta de melhor, é limitar-lhe o âmbito de aplicação. Por consequência, como nenhuma outra criação humana, os livros têm sempre sido o flagelo das ditaduras. O poder absoluto requer que todas as leituras sejam leituras oficiais; em vez de bibliotecas inteiras de opiniões, a palavra do governante deve ser suficiente. Os livros, escreveu Voltaire num panfleto satírico intitulado «Sobre o Horrível Perigo da Leitura», dissipam a ignorância, que é a custódia e salvaguarda dos Estados bem policiados». Por conseguinte, a censura, de uma forma ou de outra, é o corolário de todo o poder, e a história da leitura está iluminada por uma fila aparentemente interminável de fogueiras de censores, dos primeiros rolos de papel dos livros dos nossos tempos. As obras de Protágoras foram queimadas em 411 a. C. em Atenas. No ano de 213 a. C. o imperador chinês Chi Huang-ti tentou pôr fim à leitura queimando todos os livros do seu reino. Em 168 a. C. a Biblioteca Judaica em Jerusalém foi deliberadamente destruída durante a revolta dos macabeus.

No primeiro século da era cristã, os poetas Cornélio Galo e Ovídio foram exilados por Augusto e as suas obras banidas. O imperador Calígula ordenou que todos os livros de Homero, Virgílio e Lívio fossem queimados (mas o seu édito não foi cumprido). Em 303, Diocleciano condenou todos os livros cristãos à fogueira. E isto foi apenas o começo. O jovem Goethe, assistindo à queima de um livro em Frankfurt, sentiu que estava perante uma execução. «Ver um objecto inanimado ser punido», escreveu, «é, em si mesmo, algo verdadeiramente terrível.» A ilusão acalentada por aqueles que queimam livros é a de que com o seu acto serão capazes de cancelar a história e abolir o passado. Em 10 de Maio de 1933, em Berlim, enquanto as câmaras filmavam, o ministro da propaganda Paul Joseph Goebbels dirigiu a palavra a uma multidão entusiasmada de mais de cem mil pessoas, durante a queima de mais de vinte mil livros: «Esta noite, procedeis bem em atirar para o fogo estas obscenidades do passado. Esta é uma poderosa acção, grandiosa e simbólica, que mostrará ao mundo inteiro que o velho espírito está morto. Destas cinzas renascerá a fénix do novo espírito.» Um rapazinho de doze anos, Hans Pauker, que viria mais tarde a ser director do Instituto de Estudos Judaicos em Londres, encontrava-se presente nesta queima e recordou que, enquanto eram atirados livros para as chamas, se faziam discursos para acrescentar solenidade à ocasião. «Contra o exagero dos impulsos inconscientes baseados na análise destrutiva da psique e pela nobreza da alma humana, entrego às chamas as obras de Sigmund Freud», declamou um dos censores antes de queimar os livros de Freud. Steinbeck, Marx, Zola, Hemingway, Einstein, Proust, H. G. Wells, Heinrich e Thomas Mann, Jack London, Bertolt Brecht e centenas de outros receberam a homenagem de epitáfios semelhantes.

Um comentário:

Unknown disse...

Muito bom texto, Nos faz refletir um pouco sobre o papel da literatura na alforria humana. Me lembra o livro de Clarice Lispector - A hora da estrela... quem somos nós se não existimos? se não pensamos? se não temos vontades? A literatura terá o grandioso papel de levar as mentes desacreditadas o desejo de vida.