sábado, maio 19, 2007

Lídia - Katherine Paterson

Não era mais do que uma escrava, pensava Lídia. A quinta endividada teve de ser alugada a um vizinho, e ela e o irmão tiveram de ser empregados. Estaria o fim próximo, como a mãe dissera quando partira com as bebés depois de o urso esfomeado ter entrado na sua casa da quinta do Vermont? Naquele Inverno de 1843, as duas crianças haviam ficado entregues a si mesmas. Se, pelo menos, o pai voltasse e pusesse tudo de novo no lugar! A promessa de uma nova vida melhor acaba por pôr Lídia a caminho de Lowell, Massachusetts. Como empregada de uma fábrica vai ganhar um salário e ser livre. Pouco importa ter de viver num lar apinhado e de suportar o barulho ensurdecedor dos teares e o ar cheio de pó que traz consigo febres e tosses dilacerantes. Apesar do encarregado ameaçador, Lídia trabalha horas sem fim para poder pagar a dívida e recuperar a quinta que tanto ama.


Por fim, a campainha do fim da tarde soou e o senhor Marsden puxou a corrente, dando o dia por terminado. Diana caminhou com ela até ao lugar onde as raparigas penduravam os chapéus e os xailes e estendeu-lhe os dela.
— Vamos esquecer o regulamento esta noite — disse ela. — Já foi um dia demasiado longo.
Lídia concordou. O dia anterior parecia um passado muito distante. Já nem se recordava da razão por que o regulamento lhe parecera tão importante.

Perdera o apetite. O simples cheiro da sopa revolvia-lhe o estômago – feijão com gordura de porco e pão com queijo vermelho, batatas fritas e, claro, panquecas com molho de maçã, pudim indiano com creme e bolo de ameixa para sobremesa. Lídia mordiscou o pão e engoliu-o com chá a ferver. Como podiam as outras comer com tanto apetite com o barulho dos pratos e os gritos da conversa? Ela só desejava chegar ao quarto, tirar as botas, massajar os pés cansados e pousar a cabeça dorida. Enquanto as outras raparigas puxavam as cadeiras e as colocavam de modo a formar pequenos círculos, Lídia afastou-se da mesa e arrastou-se pelas escadas acima.

Betsy já lá estava com o eterno livro na mão. Riu-se ao ver Lídia.

— O primeiro dia em cheio! E até hoje consideravas-te uma rapariga do campo, valente, que podia aguentar tudo, não era?

Lídia não fez esforço para lhe responder. Deixou-se simplesmente cair na cama de casal, tirou as botas agressoras e massajou os pés inchados.

— Se tivesses um par mais velho... — a voz de Betsy era quase meiga — mais largo e macio...

Lídia abanou a cabeça. No dia seguinte calçaria as botas de Triphena sem as acolchoar. Ainda estavam tesas por causa da viagem e não seriam boas para o ir e vir das refeições mas, pelo menos, os pés teriam espaço para inchar.

Despiu-se, vestiu a camisa de noite velha e enfiou-se debaixo da roupa. Betsy olhou para ela.

— Tão cedo para a cama?

Lídia só teve forças para abanar de novo a cabeça. Era como se simplesmente não tivesse forças para falar. Betsy sorriu de novo. "Ela não se está a rir de mim", percebeu Lídia de repente. "Recorda como foi com ela".

— Queres que leia para ti? — perguntou Betsy.

Lídia agradeceu com a cabeça, fechou os olhos e virou-se de costas para a luz da vela.

Betsy não deu explicações sobre o romance que estava a ler, limitou-se a começar a ler em voz alta onde ela própria parara. Embora a cabeça de Lídia ainda estivesse entupida de fibras e carregada de barulho, ela tentou seguir o fio à história.

A criança estava num asilo de pobres, parecia, e tinha fome. Lídia sabia bem o que era uma criança com fome. Rachel, Agnes, Charlie – todos tinham sentido fome no ano do urso. O rapazinho da história, com fome, estendera a tigela ao encarregado do asilo e dissera:

— Por favor, senhor, quero mais.

E por causa disso, o encarregado – ela podia imaginar a sua boquinha vermelha aberta de horror - por causa disso, o encarregado gritara com a criança. Na sua imaginação, o pequeno Oliver Twist era igual a Charlie. O cruel encarregado gritara e arrastara a criança para diante de um agente. E por que crime? Pelo crime monstruoso de querer comer mais.

— Este rapaz há-de acabar na forca — profetizara o agente. — Sei que será enforcado.

Lutou contra o sono, ávida de cada palavra. Não tivera apetite para a óptima refeição servida no andar de baixo, mas agora conhecia uma espécie de fome que não sabia que existia. Tinha de descobrir o que acontecera ao pequeno Oliver. Seria ele realmente enforcado só porque desejava mais papa?

Abriu os olhos e fixou Betsy que estava absorvida na leitura. Depois Betsy sentiu o seu olhar e levantou os olhos do livro.

— É uma história maravilhosa, não é? Uma vez vi o autor — o senhor Charles Dickens. Visitou a nossa fábrica. Deixa ver... eu já estava na sala da fiação — deve ter sido em...

Mas Lídia não queria saber de autores nem de datas.

— Não pares de ler a história, por favor — pediu ela.

— Nada receies, Lídia. Não interrompo mais — prometeu Betsy, e continuou a ler, embora a voz fosse denotando fadiga, até tocar a campainha do recolher. Marcou o livro com uma fita do cabelo.

— Até amanhã à noite — sussurrou ela, enquanto os pés de um exército de raparigas martelavam nas escadas.

No dia seguinte, na fábrica, o barulho continuou estridente e os pés enfiados nas velhas botas de Triphena incharam do mesmo modo; contudo, de vez em quando, ela dava por si a cantarolar. “Por que estou de repente tão satisfeita? Que coisa maravilhosa me está a acontecer?” E então recordou-se. À noite, depois do jantar, Betsy leria para ela. Ela estava, claro, um pouco apreensiva por Oliver que na sua cabeça se confundia com Charlie. Mas havia uma antecipação deliciosa, como açúcar a dissolver-se na boca. Ela precisava de saber o que lhe iria acontecer, como se história iria desenrolar.

Diana notou a mudança.

— Estás a adaptar-te melhor do que eu esperava — disse ela.

Mas Lídia não lhe explicou. Não sabia lá muito bem como explicar que não era tanto por estar mais adaptada à fábrica, mas porque descobrira como escapar à sua opressão. As folhas coladas na janela e os gerânios no parapeito deviam ter o mesmo efeito para outras raparigas, pensou. Mas, no seu caso, era uma história.

À medida que os dias se transformavam em semanas, ela tentava não pensar como era gentil da parte de Betsy ler para ela. Havia noites, claro, em que ela não podia ler, quando havia compras a fazer ou roupa a lavar. Aos sábados à tarde saíam duas horas mais cedo e Amélia apropriava-se de Lídia e Prudence para longos passeios à beira-rio até ficar escuro. Betsy, naturalmente, fazia o que lhe apetecia, independentemente de Amélia. Aos domingos, Amélia arrastava a relutante Lídia para a igreja. A princípio, Lídia receou que Betsy continuasse a leitura sem ela, mas Betsy esperou até à tarde de domingo, quando Amélia e Prudence se encontravam no andar de baixo a escrever à família, e prosseguiu a história a partir do ponto em que a deixara na sexta-feira anterior.

Só ao fim de várias semanas é que Lídia percebeu que o livro era da biblioteca domiciliária e que o empréstimo custava a Betsy cinco cêntimos por semana. Se estivesse sozinha, Betsy lê-lo-ia muito mais depressa, Lídia tinha a certeza. Por muito que detestasse gastar dinheiro no primeiro dia em que recebeu, Lídia insistiu em dar dez cêntimos a Betsy para ajudar a pagar a empréstimo de Oliver. Betsy riu-se, mas aceitou. Também ela estava a juntar dinheiro, confessou a Lídia, pedindo-lhe que não contasse, para pagar a sua educação. Havia uma universidade no Oeste, em Ohio, que aceitava mulheres – uma verdadeira universidade e não uma escola de mulheres.

— Mas não contes à Amélia — disse ela, deixando a voz voltar ao seu habitual tom irónico. — Ela acharia que não é próprio de uma senhora ir para Oberlin.

Pareceu estranho a Lídia que Betsy se ralasse com a opinião de Amélia. Mas Lídia, que nunca desejara ser considerada uma senhora, dava muitas vezes por si a perguntar:

— Que pensará Amélia? — e a censurar-se por fazer isto ou aquilo devido a esse pensamento.

Depois, depressa de mais, o livro chegou ao fim. Parecia que tinha voado e havia tanto, principalmente no início – quando Lídia estava demasiado cansada e, por muito que se esforçasse, não conseguia ouvir com atenção –, havia tanto que necessitava de ouvir de novo. Na verdade, precisava de ouvir tudo de novo, mesmo as partes mais horríveis, o assassinato da querida Nancy e a morte de Sikes.

Desejava ter coragem para pedir a Betsy que lesse mais, mas não tinha. Betsy oferecera-‑lhe horas e horas do seu tempo e voz. E, além disso, com Julho a chegar, as três companheiras faziam planos para ir a casa. Esta palavra era como uma pancada no peito. Casa. Se ao menos também ela pudesse ir. Mas assinara um contrato por um ano com a Corporação. Se partisse nem que fosse só para ver a cabana e visitar Charlie de passagem, perderia o seu lugar.

* * * *


Julho estava quente como Diana dissera deselegantemente. Com relutância, Lídia gastou um dólar num vestido mais fresco, visto que o que tinha era demasiado quente. O passo seguinte foi ir até à biblioteca onde requisitou Oliver Twist.

Desta vez ia lê-lo sozinha. Não lhe ocorreu que estava a estudar por si, enquanto decifrava penosamente as palavras que haviam fluído como um rio da boca de Betsy. Estava tão desejosa de ouvir de novo a história que, embora cansada depois das treze horas de trabalho na sala dos teares, deitava-se a transpirar na cama, soletrando baixinho os sons da narrativa do senhor Dickens.

Dava graças por estar sozinha no quarto. Não havia ali ninguém para se rir dos seus esforços ou para se oferecer para a ajudar. Não queria ajuda. Não desejava partilhar a sua leitura com ninguém. Estava determinada a aprender tão bem, que fosse capaz de um dia ler o livro em voz alta para Charlie. E como ele ficaria espantado! A sua Lídia, tão instruída? Ia ficar orgulhosíssimo.

Durante o dia nos teares, ela revolvia na cabeça os bocados de história que decifrara na noite anterior. Então ocorreu-lhe que podia copiar as páginas, colá-las na parede e lê-las sempre que tivesse uma pausa. Não havia muitas pausas agora que manobrava três teares, mas ela colou a folha num deles e podia olhar para ela enquanto trabalhava.

Julho já ia a meio quando ela tomou a importante decisão. Uma bela noite, assim que o jantar terminou, vestiu o vestido mais quente que era mais bonito do que o leve de Verão, pôs o chapéu, calçou as botas novas e saiu para a rua. Tremia quando chegou à porta da loja, mas abriu-a. Uma campainha soou e um cavalheiro que estava ao fundo, sentado num banco por trás do balcão, olhou por cima dos óculos.

— Em que posso servi-la, menina? — perguntou educadamente.

Ela tentou controlar a tremura da voz, mas não foi capaz.

— Eu, eu vim comprar o livro — disse.

O cavalheiro deslizou do banco e esperou que ela continuasse.

Mas Lídia já fizera o discurso que ensaiara. Não preparara mais palavras. Finalmente, ele inclinou-se para ela e disse num tom de voz extremamente simpático:

— Que livro deseja, menina?

Que estúpida ela lhe deve ter parecido! A loja tinha filas e filas de livros, centenas, talvez milhares de livros.

— O, o Oliver Twist, se faz favor — conseguiu balbuciar.

— Ah — disse ele — o senhor Dickens. Uma escolha admirável.

Mostrou-lhe várias edições, algumas impressas em papel barato, com capa de papel, mas ela só queria uma. Era belamente encadernada a couro com letras douradas na lombada. Ia custar todo o seu dinheiro, estava mesmo a ver. Talvez nem tivesse que chegasse. Olhou assustada para o simpático empregado.

— São dois dólares — disse ele. — Quer que lho embrulhe?

Ela estendeu-lhe dois dólares de prata que tirou da bolsa.

— Sim — disse suspirando de alívio — sim, muito obrigada.

E apertando o seu tesouro contra o peito, saiu a correr da loja e teria corrido todo o caminho até casa, se não fosse ter reparado que as pessoas paravam a olhar para ela.


Katherine Paterson
Lídia
Porto, AMBAR, 2001
Excertos adaptados

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