sábado, maio 19, 2007

Jardins - Rubem Alves

Rubem Alves
Mansamente pastam as ovelhas…
São Paulo, Papirus Editora, 2002


Excertos adaptados


Comecei a gostar dos livros mesmo antes de saber ler. Descobri que os livros eram um tapete mágico que me levava instantaneamente a viajar pelo mundo… Lendo, eu deixava de ser o menino pobre que era e tornava-me um outro. Vejo-me sentado no chão, num dos quartos do sótão do meu avô. Via figuras. Era um livro, folhas de tecido vermelho. Nas suas páginas alguém colara gravuras, recortadas de revistas. Não sei quem o fez. Só sei que quem o fez amava as crianças. Eu passava horas a ver as figuras e nunca me cansava de as ver.

Um outro livro que me encantava era o Jeca Tatu, do Monteiro Lobato. Começava assim: "Jeca Tatu era um pobre caboclo…". De tanto ouvir a estória lida para mim, acabei por sabê-lo de cor. "De cor": no coração. Aquilo que o coração ama não é jamais esquecido. E eu "lia-o" para a minha tia Mema, que estava doente, presa numa cadeira de baloiço. Ela ria com o seu sorriso suave, ouvindo a minha leitura.

Um outro livro que eu amava pertencera à minha mãe quando era criança. Era um livro muito velho. Façam as contas: a minha mãe nasceu em 1896… Na capa havia um menino e uma menina que brincavam com o globo terrestre. Era um livro que me fazia viajar por países e povos distantes e estranhos. Gravuras apenas. Esquimós, com as suas roupas de couro, dando tiros para o ar, saudando o fim do seu longo inverno. Em baixo, a explicação: "Onde os esquimós vivem, a noite é muito longa; dura seis meses". Um crocodilo, boca enorme aberta, com os seus dentes pontiagudos, e um negro a arrastar-se na sua direcção, tendo na mão direita um pau com duas pontas afiadas. O que ele queria era introduzir o pau na boca do crocodilo, sem que ele se desse conta. Quando o crocodilo fechasse a boca estaria fisgado e haveria festa e comedoria!

Na gravura dedicada aos Estados Unidos havia um edifício, com a explicação assombrosa: "Nos Estados Unidos há casas com dez andares…". Mas a gravura que mais mexia comigo representava um menino e uma menina a brincar, querendo fazer um jardim. Na verdade, era mais que um jardim. Era um minicenário. Haviam feito montanhas de terra e pedra. Entre as montanhas, um lago cuja água, transbordando, transformava-se num riachinho.

E, nas suas margens, o menino e a menina haviam plantado uma floresta de pequenas plantas e musgos. A menina enchia o lago com um regador. Eu não me contentava em ver o jardim: largava o livro e ia para a horta, com a ideia de plantar um jardim parecido. E assim passava toda uma tarde, fazendo o meu jardim e usando galhos de hortelã como as árvores da floresta…

Onde foi parar o livro da minha mãe? Não sei. Também não importa. Ele continua aberto dentro de mim.

Um comentário:

Unknown disse...

Relato maravilhosamente poetico de uma infância vivida e posteriormente reapreciada...