domingo, maio 20, 2007

Um coração à escuta - Katherine Paterson

Katherine Paterson
Um Coração à Escuta (The Spying Heart)
New York, E.P. Dutton, 1989



A tarefa básica da educação é cuidar da, e alimentar a, imaginação. A forma mais antiga de educação consistia em contar histórias. Hoje, as histórias foram relegadas para o reino da frivolidade. Agora, a educação consiste mais em trabalhar com computadores do que em cultivar a imaginação. Podemos decidir em que anos vamos ensinar que factos, funções ou palavras, e podemos dar ao aluno um teste de escolha múltipla para saber se assimilou o que queríamos que assimilasse. Queremos compartimentar a matemática e a mitologia, porque sabemos que a imaginação é algo de selvagem e incómodo. Dado que não podemos medi-la objectivamente, qualquer disciplina do currículo que tenha a ver com o crescimento da vida interior de uma criança é classificada de frívola, o que faz com que a eliminemos por completo, ou que a coloquemos à margem.

Recordo o choque que senti quando fui visitar uma escola nova na área onde resido. Vi as salas de aula, o ginásio, o laboratório de economia doméstica, a sala de artes industriais, e reparei que nenhum deles tinha janelas. A minha guia elucidou-me, dizendo que há estudos que provam que as janelas levam os alunos a uma perda de tempo, já que se distraem a olhar lá para fora. Não teci comentários, mas sei perfeitamente que, se sobrevivi à minha educação escolar, foi devido às janelas das minhas salas de aula.

O crescimento da imaginação exige janelas – janelas através das quais possamos olhar o mundo e janelas através das quais possamos olhar-nos a nós mesmos. As histórias antigas funcionavam como janelas deste tipo.

A história fornece-nos uma linguagem para lidar com o desconhecido. Modela o caos e enche-o de sentido. Tem de nos dizer algo que já sabíamos, mas que não sabíamos que sabíamos.

Exigimos que as crianças sejam criativas, que desenvolvam a sua imaginação a partir do nada. Se elas falham nessa tarefa, culpamos a televisão e os jogos de computador. Esquecemo-nos de que precisamos de cultivar e desenvolver a relação entre as imagens que guardamos dentro de nós e a forma de as exprimirmos exteriormente.

Este processo enceta-se quando lemos histórias às crianças desde muito cedo, mesmo antes de elas compreenderem as palavras. Devemos ler-lhes narrativas antigas, mas também partilhar com elas obras mais recentes. A criança sente que pode aventurar-se e que pode, no entanto, regressar sempre ao aconchego do lar, o que lhe permite expandir as suas viagens interiores.

No ano passado, numa conferência, pediram-me para fazer parte de uma mesa-redonda que englobava dois psiquiatras e uma assistente social. O tema em debate era o uso da literatura no tratamento de crianças com distúrbios psiquiátricos. Declinei o convite porque não gosto que se diga a uma criança o que ela deve extrair de determinado livro. Sentei-me no fundo da sala e ouvi o que aquelas pessoas tinham para dizer. Foi uma experiência muito gratificante ver como elas acreditavam no poder curativo da imaginação. Nunca prescreviam um livro a uma criança. Eram leitores assíduos e tinham nos seus gabinetes uma enorme quantidade de livros. Depois de conhecer melhor uma criança, propunham-lhe a escolha de uma obra, entre várias. A criança fazia a sua própria selecção e não se sentia obrigada a falar sobre o que tinha lido. Quando a criança não gosta de um livro, seja porque não lhe diz nada, seja porque lhe diz coisas que não quer ouvir, deixa de o ler.

Há tempos, recebi uma carta da dona de uma livraria, que tinha para venda um livro que traduzi do Japonês. Contava-me que, um dia, uma senhora entrou na loja e lhe pediu um livro sobre a morte, para o dar a ler à menina de dois anos que trazia consigo. A dona da livraria tentou saber se a morte tinha a ver com uma avó ou com um animal. Mesmo em frente à menina, a senhora disse: “Acontece que o pai dela matou a mãe dela e depois se suicidou.”

Tive exactamente a mesma reacção que vocês estão a ter ao ler isto. Nunca ninguém escreveu um livro para uma situação desse teor. Mesmo que o tivessem escrito, duvido que tivesse sido publicado ou comprado. O filho da dona da livraria sugeriu o livro que eu tinha traduzido: A mulher do grou. Embora reticente, aquela vendeu o livro. Passada uma semana, a senhora veio dizer-lhe que o livro tinha ajudado a criança. A carta dela destinava-se a agradecer-me, em nome de todos eles.

Temos de agradecer, de facto, mas não a mim. Escolhi traduzir o livro por causa do seu poder imaginativo. O grou ferido que volta à vida, sob a forma de uma jovem, constrói um tear e esconde-o atrás de portas de papel, pedindo ao marido que nunca a observe enquanto ela tece.

A tecelagem parece enfraquecer a jovem esposa, mas o tecido que deriva desse esforço tem uma beleza fora do comum, e o marido pode vendê-lo a um preço muito elevado. Mas, à medida que o tempo passa, o homem torna-se avarento e consumido pela curiosidade. Quando não consegue resistir mais, abre a porta e vê que o tecelão é um grou ensanguentado, que arranca as próprias penas com o bico para as transformar em fio.

Quando li isto, percebi que a arte é um tecido feito a partir das penas do nosso próprio peito. Só que ninguém pode ser testemunha do processo. Ninguém; nem o próprio tecelão. Os seus pensamentos e sonhos devem ser deixados em paz. A razão, a cobiça e a impaciência devem ser vigiadas. Se não, um dia, a mulher do grou pode levantar voo e ir embora, para sempre.

Um comentário:

Cássia Dall'Igna disse...

Encantador!
Uma prova de que devemos ouvir mais o que diz o nosso coração pela linguagem da imaginação.
Eu me emocionei...
Cássia Dall'Igna