Pequenos Vagabundos é a história das aventuras vividas por três jovens que a pobreza obriga a deixar a sua aldeia, pedindo esmola de terra em terra. Numa longa viagem pela Itália, Francesco, Domenico e Anna vivem uma profunda e dramática esperiência humana.
— Não se aproximem, são ciganos — continuava a gritar a garota.
— Aquela parva — murmurou Anna —, se lhe conseguisse apanhar as tranças mostrava-lhe quem é que são os ciganos.
— Mas é uma bela escola! — disse Francesco.
Muitas crianças já se tinham aproximado da cancela, intrigadas pelo aspecto dos três pequenos vagabundos. E atrás delas, tranquila e séria, uma senhora idosa, com os cabelos grisalhos e um xaile preto pelas costas. Os alunos deixaram-na passar, e alguns dos mais pequenos penduraram-se-lhe no braço, para ganhar coragem.
— Bom dia — disse a professora com um ligeiro sorriso. — Vêm de longe?
Os três não responderam, mas Anna arriscou também um sorriso.
— Não são ciganos — explicava a professora aos seus alunos —, são meninos que vêm do Sul, se calhar a aldeia deles foi destruída pela guerra.
As coisas não eram bem assim, mas Anna fez na mesma que sim, para agradar à professora; e no fundo não era muito diferente da realidade.
— Como se chamam? — perguntou a senhora.
Desta vez Anna respondeu pelos três, mas Francesco e Domenico também se sentiram melhor: nunca ninguém lhes tinha falado com tanta doçura, nem sequer a mãe, que estava sempre cansada e doente, e tinha demasiadas dores e preocupações na cabeça.
— Eu andei na escola — disse Anna. — Fiz a primeira classe. Eles não. Eles nunca foram à escola.
— E ainda sabes ler? — perguntou a professora.
— Acho que sim. Em casa tenho todos os cadernos e o livro de leitura. Gostava de andar na escola. Mas depois já não tinha sapatos e bata e tinha de ajudar a tia com as crianças pequenas, e por isso nunca mais lá voltei.
Alguns dos alunos riram-se apontando Francesco e Domenico:
— Nunca foram à escola, não sabem ler nem escrever, são mesmo burros!
A professora abanou a cabeça.
— Não têm culpa. Se tivessem podido ir tinham aprendido, talvez melhor do que vocês. Não é verdade? — e inclinou-se para Francesco, que fez que sim com a cabeça.
— Não tens língua?
— Tenho — disse Francesco, e riu-se.
— Não gostavas de aprender a ler?
— Bom, gostava, mas como?
— A Anna pode ajudar-te. Será a tua professora.
Anna desatou a rir.
— Que rica professora... Nem sequer tenho a certeza de me lembrar de tudo.
— Vou dar-vos uma cartilha — disse a professora.
— Se o Albino a vê — disse Domenico —, deita-a para a fogueira.
— Quem é o Albino?
Francesco contou em poucas palavras. Quando acabou, viu com espanto que alguns dos alunos tinham lágrimas nos olhos. A sua história era assim tão dolorosa? Tudo o que lhe tinha acontecido a ele, a Anna e a Domenico lhe parecia natural. Agora, diante daquelas crianças que tinham uma casa, uma mãe e uma escola limpa, um quintal, uma professora amável e boa, não sentiu inveja nem dor mas – estranhamente – um certo orgulho.
“Eles choram ao ouvir contar estas coisas”, pensou, “e nós suportámo-las sem chorar.”
— Temos de nos ir embora — disse Domenico. Durante todo o tempo que tinham estado ali tinha mantido enfiado na algibeira do casaco o seu bracinho mutilado, conforme o seu velho hábito. A professora devia ter notado alguma coisa mas não disse nada, apenas o acariciou docemente no cabelo. E ele, que não suportava isto de ninguém, desta vez não se ofendeu.
A professora mandou buscar uma cartilha e deu-a a Francesco, que nem sequer ousou folheá-la.
— Pronto, agora têm mais um amigo — disse a professora —, agora são quatro, com a cartilha.
— Mostra-ma — disse Anna.
E abriu-a com delicadeza: as páginas a cores, as grandes letras dispostas em filas irregulares e ao mesmo tempo ordenadas, despertaram-lhe de repente velhas recordações da escola. Seguiu as linhas com olhos impacientes, soletrando com os lábios, e apercebeu-se com espanto de que sabia ler correntemente: as palavras, que inicialmente lhe dançavam à frente sem nada lhe dizer, revelaram-lhe o seu significado... Mar, ramo, terra, mamã... Sem se aperceber disso, começou a ler em voz alta:
— Ramo de amoras, ramo de amor... — E riu-se excitada: — Sei ler, ouviu?
— Hás-de ser uma boa professora. Também precisam de um caderno e de um lápis.
Um dos alunos afastou-se e voltou com um pequeno caderno quadriculado e um lápis sem bico.
—Toma estes — disse. E quase para se desculpar acrescentou: — Depois logo digo à minha mãe.
Quando os três miúdos se foram embora, todos os alunos se apinharam junto à cancela e lhes disseram adeus agitando as mãos e gritando. A professora, de pé no meio deles, com os braços cruzados, apertados debaixo do xaile, continuou a sorrir durante um bocado.
O á-bê-cê de Francesco
Queridos rapazes e raparigas, a diferença entre esta história e um grande romance de aventuras reside no facto de que aqui é tudo verdade, desde a primeira palavra até à última: Anna, Francesco e Domenico, os três pequenos vagabundos entregues pelos seus parentes a um empresário que os levou a pedir esmola pela Itália, existiram realmente, e ainda existem crianças como eles. Ainda existem famílias que não sabem como matar a fome aos seus filhos. Há rapazes que têm por escola somente a rua: uma escola dura, terrível. Eu conheci rapazes que atravessaram a Itália com uma gaiola com um papagaio ao pescoço, ou cantando, ao som de um acordeão, ou vendendo bilhetinhos como sina. Eles não odiavam os seus pais por isso: percebiam muito bem por que tinham sido obrigados a abandonar a sua pobre casa, a sua terra miserável.
Alguns destes rapazes estragaram-se: ninguém vive na rua sem se sujar com a sua lama. Alguns deles tomaram-se pequenos ladrões, ou pior. Mas outros caminharam sem se sujar: permaneceram bons e tomaram-se fortes e corajosos. Nesta história não quis contar-vos aventuras inacreditáveis, mas como Anna, Francesco e Domenico conquistaram a sua força e, como eles, dia após dia, se tornaram homens. As aventuras dos piratas são mais coloridas e fascinantes, sem dúvida: mas a aventura de se tornar homem é mais bonita, porque é mais verdadeira.
A cartilha que a professora da aldeia tinha oferecido a Francesco ia no seu bornal. Quando, numa pausa da viagem, na praia ou à sombra de uma árvore, Francesco a tirava com delicadeza e, pondo-a no chão, começava a folheá-la, toda a miséria que rodeava os rapazes desaparecia e um mundo novo, desconhecido e maravilhoso, se abria à sua volta.
Domenico contentava-se com ver as ilustrações: a bandeira, uma flor, um navio. Nunca se cansava de as ver: conhecia todos os mais pequenos pormenores, mas pareciam-lhe sempre diferentes, mais belas.
Francesco copiava no pequeno caderno as letras do alfabeto e as primeiras, simples, palavras de uma só sílaba. Anna não era uma professora paciente. Ela própria mal sabia ler, e também nas suas mãos o lápis se tomava pesado como um maço, mas parecia-lhe que Francesco levava demasiado tempo a aprender.
— És burro — dizia — e burro hás-de ficar. É preciso fazer assim, olha.
Mas Francesco não deixava que ela lhe tirasse o lápis.
— Quero experimentar. Deixa-me experimentar.
Os «grandes» da caravana não lhes ligavam. Só o tio Filippo, às vezes, se punha de pé atrás deles, com o velho cachimbo na boca. O tio Filippo também nunca tinha ido à escola.
— A minha caneta foi a enxada — dizia, mas sem se rir —, aprendi a escrever sulcos bem direitos na terra, mas depois tivemos de vender a terra.
E cuspia, ao lembrar-se da terra perdida.
Os outros rapazes da caravana também não se interessavam pela cartilha. O Albino levava-os sempre consigo: eram mais obedientes e dóceis com ele. Durante as marchas Francesco esforçava-se por reconhecer as letras que tinha estudado nos letreiros da estrada. Ficava parado a olhá-los durante muitos minutos, até que do embrenhado das letras uma saía e corria directamente para os seus olhos.
— Aquele é um O — dizia — e aquele é um T.
Anna soletrava então toda a palavra. Mas foi um grande dia quando Francesco conseguiu sozinho ler um letreiro todo. Pôs-se a dançar e não parava de gritar a palavra maravilhosa:
— Molinella! Molinella!
Tinham deixado o mar havia já alguns dias, e vagueavam de aldeia em aldeia na planície emiliana. Na realidade, Francesco lia «Molinela» só com um l, e quando o tio Filippo lhe disse o nome exacto da aldeia não queria ceder:
— Você não sabe ler — dizia, excitado —, mas eu sei.
— Há tantas coisas que não se aprendem nos livros — disse o tio Filippo —, não te esqueças, professor.
Desde aquele dia o tio Filippo começou a chamá-lo, por brincadeira, «o professor».
— Olá, como vais, professor? Como está hoje o alfabeto?
— Sempre igual, tio Filippo. Sabe, não falta muito, vou escrever para casa.
— Mas a tua mãe não sabe ler.
— Não tem importância. Fica contente na mesma. Há-de pedir ao Miguel, o ferro-‑velho, que lha leia.
Naquela mesma noite concretizou o seu projecto, com a ajuda de Anna. Na verdade, algumas palavras foram escritas por Anna, e algumas outras copiaram-nas directamente da cartilha, mesmo que não tivessem nada a ver com a conversa. Por exemplo, Francesco quis a todo o custo escrever na folha o nome de todas as terras que tinham atravessado desde que tinha começado a ler os letreiros das estradas.
Devia ter muitos erros, mas quando a carta ficou acabada – duas páginas inteiras de palavras – ficaram os três a olhar para ela sem fôlego, durante um bom bocado.
Dizia ela (mas vou transcrevê-la sem os erros):
«Querida mãe, nós estamos bem e esperamos que a mãe também, mais o Peppe e a Rina. O trabalho não é muito e a comida chega. Não se preocupe connosco. Quando voltarmos para casa iremos ocupar a terra e teremos de que viver todos juntos. A Anna ensinou-me a escrever e a ler. O Domenico ainda quer a mão nova e, se tivermos dinheiro, vamos comprá-la. Estas aldeias são mais bonitas do que as nossas e os camponeses ajudam-‑nos. Que esteja de saúde e muitos cumprimentos e beijos dos seus filhos
Francesco e Domenico»
Debaixo das assinaturas estavam as palavras «ramo, navio, barco, bandeira», e os nomes de seis ou sete terras.
— Ela vai perceber por que é que os escrevemos, não duvidem — garantiu Francesco.
Meteu a carta no bornal, enquanto Anna corria a ajudar a tia Teresa a preparar o jantar.
— Amanhã — disse Francesco — peço a um camponês que me ajude a escrever o envelope e a enviá-la.
Naquela noite dormiu com a cabeça apoiada no bornal e parecia-lhe que dele saía um estranho calor. Acordou várias vezes com medo que alguém lhe roubasse a carta, e de cada vez abriu o bornal para ver se continuava no seu lugar.
Na manhã seguinte enviou-a. Naquela tarde chegaram a Ferrara.
Gianni Rodari
Pequenos vagabundos
Lisboa, Editorial Caminho, 1986
Excertos adaptados
Pequenos vagabundos
Lisboa, Editorial Caminho, 1986
Excertos adaptados
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