sábado, maio 19, 2007

A encruzilhada - Katherine Paterson

Katherine Paterson
The Invisible Child
New York, Dutton Children’s Books, 2001

Excertos adaptados

Quando me pediram para falar sobre Anne Carroll Moore, a autoridade mais importante no domínio dos livros para crianças da primeira metade do século XX, lembrei-me de uma carta que ela menciona ter recebido do pai e na qual este escreve: Esta vida é um grande mistério. Viver é uma tarefa árdua e viver bem é ainda mais árduo. É um enigma saber o que fazer, a que nos dedicarmos. Mas seja qual for o caminho que escolhas, queremos oferecer-te o melhor que pudermos, cientes de que és tu que tens de decidir o que é melhor para ti, no contexto em que vais viver.

No início deste mês fui visitar uma amiga que é bibliotecária em duas escolas: uma situada numa cidade rica e outra numa cidade mais modesta. Quando a primeira escola foi confrontada com a necessidade de fazer cortes no orçamento, optou por sacrificar os livros em vez da Internet. Na segunda escola fez-se um esforço maior no sentido de se conseguir verbas para comprar livros. No entanto, quando a bibliotecária foi à maior livraria da zona, deparou com poucas das obras que ela considerava essenciais. Ao partir do princípio de que os livros são produtos de consumo rápido, os editores não se dão ao trabalho de reeditar obras antigas, aclamadas por inúmeras gerações de leitores, e esquecem-se de que a criança que hoje pega num livro para ler fá-lo com vontade de passar tempo com ele e não de o tratar como um produto descartável. Quando tive de fazer uma palestra sobre “Para que serve, afinal, a Literatura?” dei-me conta da confusão a que chegámos, para ter de formular uma pergunta deste teor. É essa confusão que torna difícil arrostar com os ventos agrestes da tecnologia e do mercantilismo, que estão a atirar-nos para direcções das quais é difícil sair.

Em 1995 desloquei-me, com o meu marido, às Ilhas Fiji para participar num congresso de professores do sudeste asiático. Estava preocupada com o tema que deveria abordar, mas os meus colegas disseram-me que a esmagadora maioria dos professores que estariam presentes nem sequer tinham lápis e papel na sala de aula. Seria melhor que lhes contasse histórias, as histórias dos meus próprios livros. Felizmente para mim, a minha palestra só teria lugar no fim da semana, depois de já ter ouvido falar de experiências que me eram tão alheias quanto as minhas o eram para os meus ouvintes. Foi com encanto que ouvi todas as noites contar histórias de terras e culturas distantes e diferentes da minha, que vi livros feitos em casa, a partir de jornais velhos, com letras garrafais para que salas de cinquenta alunos os pudessem ler em conjunto. Depois de ter falado para aquele público, senti-me como nunca antes me tivera sentido. É que nunca me tinham ouvido com tanta atenção na vida. Tendo crescido em culturas de tradição oral, aquelas pessoas sabiam ouvir.

Quando a civilização ocidental decidiu passar à escrita os tesouros da imaginação literária e científica contribuiu para que perdêssemos o poder da memória colectiva e a capacidade de escutar verdadeiramente a palavra falada. Mas a invenção da imprensa veio também permitir que mais pessoas pudessem ter acesso ao que era escrito e formar a sua própria opinião sobre o que lhes era dito.

O próprio acto da leitura modificou-se. Em vez de lerem só um ou dois livros, as pessoas passaram a ler mais. Hoje em dia já quase não se lê, de tal forma somos inundados de material impresso. É este um dos poucos capítulos nos quais os que escrevem para jovens têm vantagens sobre os outros escritores. É que os jovens têm uma predisposição para ler devagar e reler o que lhes interessa vezes sem conta.

Quando um amigo meu se dedicou a estudar as razões da pobreza na América, deparou com a resposta, dada por uma ex-toxicodependente e ex-presidiária, de que a pobreza deriva das pessoas pobres não terem acesso, desde crianças, à possibilidade de ler, reflectir e influenciar as decisões políticas que são tomadas em seu nome. Quando ela teve essa oportunidade, teve também oportunidade de mudar de vida.

A leitura intensiva permite-nos entrar em contacto com a sabedoria do nosso tempo. A sabedoria não consiste em coleccionar factos ou gerir informação. Significa ler pausadamente, repetidas vezes, e entrar em contacto com livros que estão rapidamente a deixar de serem impressos. Se há livros que as crianças só lerão uma vez, outros há que elas quererão ler repetidamente e que as nossas bibliotecas e livrarias já não lhes podem facultar. Sem prazer, não há leitura. E as crianças obtêm um prazer inaudito com a leitura intensiva de um livro escrito com profundidade.

A sabedoria consiste em ver as leis e padrões que enformam a realidade que nos rodeia. Num mundo onde o lucro domina e a tecnologia está ao serviço dele, é preciso coragem para corrermos riscos na busca dessa sabedoria. Riscos que não nos trarão benefícios financeiros ou aplausos do público. Aqueles que procuram a sabedoria são cada vez menos numerosos.

Num dos seus livros, Frances Clarke Sayers resumiu de forma extraordinária a tarefa que nos aguarda:

A capacidade de resposta ao intuitivo e ao poético é mais forte na infância. Se tirarmos esta capacidade às crianças, estaremos a privá-las de um refúgio e de uma âncora duradouros. Se não prestarmos atenção às modas e às teorias, se não perdermos a oportunidade de partilhar com as crianças os livros que nos arrebataram, independentemente da idade, capacidade ou incapacidade delas e acreditarmos no poder do escritor, no poder da nossa própria sinceridade; se pedirmos aos editores, artistas e escritores que dêem o seu melhor; se acordarmos nas crianças uma resposta que vá para além das suas necessidades imediatas, então não deixaremos morrer o cantar do pássaro.

Munidos de compaixão e coragem, temos de fazer o nosso melhor hoje para ajudar os que amanhã decidirão fazer o que melhor convém ao seu tempo.

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