sábado, maio 19, 2007

A cabra do senhor Séguin - Gianni Rodari

Gianni Rodari
Gramática da Fantasia
Lisboa, Ed. Caminho, 2004

Excertos adaptados


Uma vez, os alunos de Mario Lodi leram na aula a história da pobre cabrinha do Senhor Séguin que, farta da corda com que o dono a tinha amarrada, foge para a montanha onde o lobo – ao fim de uma heróica tensão – acaba por comê-la. Ainda conservo o velho número do Insieme – o jornal de turma que há vários anos os rapazes de Vho organizam e enviam aos seus amigos – em que vem a discussão que se seguiu a essa leitura. Ei-la:
Walter: – Daudet escreveu a história de uma cabra, a cabra do dono Séguin, e nós discutimo-la porque não estávamos de acordo com ele.
Elvina: – A cabra de Daudet fugiu porque desejava a liberdade e o lobo comeu-a. Nós refizemos a história de outra maneira.
Francesca: – O dono dizia à cabra que na montanha estava o lobo, mas só lho dizia porque queria ter a cabra presa para lhe extrair o leite.
Danila: – Nós escrevemos que a cabra fugiu e encontrou a felicidade na montanha em liberdade.
Miriam: – Tal como o homem quer viver livre, também a nossa cabra quer viver livre.
Mario: – Tinha esse direito. Se viesse o lobo, as cabras todas juntas poderiam matá‑lo à coroada.
Miriam: – Penso que Daudet quis ensinar que, quando se desobedece, acontecem desgraças.
Walter: – Mas a nossa cabra, ao saltar para fora do recinto, desobedeceu a um dono que a tinha presa para lhe roubar o leite: neste caso não é uma desobediência, é uma rebelião contra um ladrão.
Mario: – Certo, porque ele roubava o leite, enquanto ela queria ser livre.
Miriam: – Mas ele precisava do leite da cabra.
Francesca: – Mas a cabra precisava de liberdade. O dono podia levar a cabra a dar passeios na montanha e ela dava-lhe o leite.
Walter: – Mas a cabra, como diz Daudet, não queria ter ao pescoço uma corda mais comprida: não queria a corda, nem curta nem comprida.
Francesca: – Esta fábula faz-me pensar na luta dos italianos para se libertarem dos austríacos.
Miriam: – Quando os italianos se libertaram, ficaram felizes, tal como a cabra quando chegou ao monte.


Seguia-se, no jornal, o texto da história reescrita pelas crianças. Nesta, o sonho da cabra era coroado pelo triunfo de uma sociedade de cabras livres, na montanha.

Escolhi este texto para prosseguir noutra direcção a exploração do «eixo da leitura», começada com a criança que lê histórias aos quadradinhos, e também porque ela ilustra, como um caso limite, o que pretendem dizer os teóricos da informação quando afirmam que «a descodificação de uma mensagem se dá sempre de acordo com o código do destinatário».

Na realidade, a história de Daudet pode prestar-se a interpretações mais subtis. Não é muito simplesmente um caso de desobediência castigada. A cabra, no final, aceita gloriosamente a morte, combatendo. Poder-se-ia mesmo chegar a fazê-la dizer: «mais vale morrer do que viver escravo»...

Mas as crianças de Vho, recusando-se a embrenhar-se em nuances ambíguas, como ambíguas são muitas vezes as sendas do humorismo, vigorosamente recortaram na história uma moral reaccionária que puseram sob acusação. A gloriosa tragédia final não podia persuadi-los: para eles, o herói tem de vencer, a justiça tem de triunfar... Todas igualmente «antiformalistas», defensoras acérrimas dos conteúdos e insensíveis às graças da expressão, as crianças vêm a apresentar, no decorrer da discussão, comportamentos diferentes.

Miriam não parece totalmente disposta a negar que «quando se desobedece acontecem desgraças» e reconhece, com a capacidade muito feminina de se pôr no lugar dos outros, que o dono «precisava do leite da cabra». Francesca contentar-se-ia com um compromisso reformista: «o dono podia levar a cabra a dar passeios na montanha e ela dava-lhe o leite». Walter é o mais consequente, o mais radical: «a cabra não queria a corda, nem curta nem comprida».

O que se impõe no fim é o sistema de valores do colectivo, com as suas palavras-chave: «liberdade», «direito», «conjunto» (a união faz a força). As crianças vivem e trabalham há anos «em conjunto», numa pequena comunidade democrática que exige e estimula a sua participação criativa, em vez de reprimi-la, desviá-la ou instrumentalizá-la.

Leiam-se os dois extraordinários livros de Mario Lodi: C'e Speranza se Questo Accade al Vho e Il Paese Sbagliato [Há esperança se isto acontecer no Vho e A terra errada]. Explicam como as crianças, quando pronunciam palavras como «liberdade», «direito», «conjunto», as sentem plenas da sua experiência. Não são palavras aprendidas, são palavras vividas e conquistadas. Estas crianças gozam de liberdade de pensamento e liberdade de palavra. Estão habituadas a exercer a sua crítica sobre todas as matérias-primas, incluindo o papel impresso.

Chamadas e notas, nem sabem o que isso é: nenhum momento do seu trabalho é ditado por programas burocráticos, por uma rotina didáctica, pelas exigências da escola como instituição, mas é sim motivado como um acto vital. É um «momento de vida», não um «momento escolar». Portanto, para elas, discutir a história de Daudet não é um exercício escolar, mas uma necessidade.

Na sua maior parte, as crianças são filhas de assalariados agrícolas; e estamos num pequeno casal do Vale do Po, numa zona que tem fortes tradições de lutas sociais e políticas, que deu um contributo muito seu à Resistência. A palavra «dono», tal como a palavra «patrão», tem para elas um significado muito preciso. Tem o rosto do dono da propriedade. Um «dono» inimigo. E é essencialmente a palavra «dono» que serve de perno, na sua imaginação, à «descodificação» da mensagem.

Adaptando-se à interpretação colectiva, Francesca e Miriam têm a tendência para a fazer sair do terreno da luta de classes, recordando «as lutas dos italianos para se libertarem dos austríacos»; ou seja, recorrendo a figuras da vaga mitologia dos livros escolares. Mas a comparação decisiva foi pronunciada por Walter, quando estabeleceu a equação entre «dono» e «ladrão». Com base nesta equação é possível distinguir entre «desobediência» e «rebelião».

Francesca tinha falado do dono que mantinha a cabra presa para «extrair» dela o leite. Mas Walter energicamente recusou o verbo «extrair» e os seus ecos escolares («da ovelha extrai-se a lã»...), para o transformar sem equívocos num violento «roubar». Assim, na discussão, as palavras do texto lido perdem peso, e delas surgem outras, que recomporão a história de acordo com uma norma autónoma.

Já diziam os antigos: De te fabula narratur. Até as crianças, que não conhecem latim, referem a si mesmas as histórias que ouvem. As de Vho esqueceram praticamente a cabra para se porem a si próprias na situação dela e porem, em vez do «dono», o pai assalariado agrícola e o seu patrão, o «dono» das terras.

Na imaginação da criança leitora (tal como da criança ouvinte), a mensagem não se grava como um estilete na cera, mas choca com todas as forças da personalidade. Isto, torna-o mais evidente o exemplo das crianças de Mario Lodi, que foram postas em condições de tornar explícito o aspecto «auto-reflexivo» da leitura e de se exprimirem criativamente.

Mas o choque verifica-se sempre. Pode dar-se no fundo da consciência e permanecer improdutivo se a criança for condicionada a ouvir só para se conformar com o que ouve, e a ler, ficando dentro dos limites do modelo cultural e moral imposto pelo texto. Nestes casos, na maior parte das vezes, a criança não faz mais do que fingir educadamente...

Contem-lhe a história da cabra do Senhor Séguin sublinhando o seu possível carácter de apólogo em volta das «desgraças» que vão ao encontro de quem desobedece, e a criança compreenderá que esperam dela uma severa condenação da desobediência. Poderá pô-la até por escrito, se lhe mandarem fazer o resumo da história. Chegará superficialmente a convencer-se de que acredita nela.

Mas não será verdade. Ela terá mentido, como mentem sempre as crianças ao escreverem nas «redacções» exactamente o que pensam que os grandes desejam ler. Por sua conta e risco, contentar-se-á em esquecer o mais rapidamente possível a história da cabra, como se esquece das outras histórias edificantes...

O encontro decisivo entre as crianças e os livros dá-se nos bancos de escola. Se se verificar numa situação criativa, onde o que conta é a vida e não o exercício, poderá surgir dele o gosto da leitura com que não se nasce, porque não é um instinto. Se se der numa situação burocrática, se o livro for assassinado ao ser relegado para a condição de instrumento de exercícios (cópias, resumos, análises gramaticais, etc., etc.), sufocado pelo mecanismo tradicional «interrogação‑juízo», poderá nascer daí a técnica da leitura, mas não o gosto.

As crianças saberão ler, mas só lerão se forem obrigadas. E fora da obrigação irão refugiar-se na banda desenhada – mesmo quando são capazes de leituras mais ricas e mais complexas – talvez só por a banda desenhada não ter sido «contaminada» pela escola.


Nenhum comentário: