domingo, maio 20, 2007

O fenómeno da desleitura - Inês Pedrosa

Inês Pedrosa
Única, Expresso
15 Novembro 2003


Excertos adaptados


Num canto de Lisboa, ao lado do rio, no Centro Cultural de Belém, pode-se ver um projecto de Fernanda Fragateiro – um projecto não apenas importante, mas de um esplendor urgente, porque trata de uma das mais graves e contagiosas doenças portuguesas: a desleitura.

A desleitura é uma variante activa e mortal do analfabetismo: o doente aprende a juntar as letras, mas permanece a vida inteira incapaz de interpretar um texto, ou mesmo de ler tudo o que exceda a dimensão de um título garrafal ou de uma legenda de fotografia. Em casos tipificados, pode atingir o nível da chamada borbulhagem snobe, uma alergia a toda a produção literária da sua língua, que o doente considera, no seu todo e a priori, «ilegível» ou «maçuda».

Confesso que, depois de ler, no passado domingo (9 de Novembro), no jornal «Público», a descrição do novo programa de Português do Ensino Secundário feita pela direcção da Associação dos Professores de Português, o que me espanta é que, apesar de tudo, ainda haja tantos jovens capazes de sobreviver ao desprezo pela literatura que neste programa se enuncia de forma transparente – tanto no que se diz como na fórmula protopomposa de o dizer: a) Redução do 'corpus' literário. (…) b) Alargamento do 'corpus' não-literário; O novo programa introduz o artigo científico e técnico, o artigo de apreciação crítica, o comunicado, o contrato, a crónica literária, a declaração, a reclamação, o regulamento, o requerimento, o texto audiovisual, o texto de reflexão, o texto publicitário e o verbete de dicionário e de enciclopédia. c) Alargamento da compreensão oral. As novas competências a desenvolver explicitamente são a escuta do discurso político e a componente de compreensão do oral durante uma entrevista ou um debate. d) Alargamento das competências de leitura. Leitura de relatório (…). Ninguém será capaz de explicar a estas almas-em-alínea que quem aprende a ler em profundidade Gil Vicente ou Camões, a poesia de Garrett ou o conto do século XIX (só para falar das obras literárias agora excluídas) é capaz de se lançar a todo e qualquer relatório ou regulamento, requerimento ou artigo jornalístico – e que a inversa não é verdadeira?

Peço ao Ministro da Educação o favor de meditar no suplemento publicado este mês pela revista francesa «Lire» sobre as formas de estimular o gosto pela leitura nos jovens. Ficamos a saber, por exemplo, que o Ministério da Educação francês se tem preocupado em aumentar o peso da literatura no ensino da língua, desde a primeira infância – anexando listas de obras literárias aos programas (obras obviamente adequadas a cada idade). Nós preferimos que os nossos jovens aprendam a elaborar relatórios eficientes – talvez para que possam, daqui a 20 anos, justificar diante da Europa a permanência do País neste singularíssimo último lugar de produtividade.

O que me mantém o optimismo em boa forma é o contacto permanente com as excelentíssimas bibliotecas públicas portuguesas (obrigada, Teresa Gouveia; obrigada, Manuel Maria Carrilho) e com os leitores, em número crescente, que as frequentam. Nos últimos anos, tenho tido o prazer de animar comunidades de leitores em bibliotecas variadas. Em Portalegre ou em Loures, na Ericeira, no Pinhal Novo ou, agora, no Seixal, encontrei pessoas fascinantes, que fazem da leitura partilhada uma forma de crescimento interior e de educação para a mudança. Na primeira sessão da comunidade do Seixal, há semanas, pedi a cada participante que falasse de um ou mais livros que tivessem marcado a sua vida e a única que não soube o que responder foi uma estudante da licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas, que nos explicou: É que eu tenho que ler tantos livros de crítica, análise das obras que não tenho tempo para ler as obras em si… Ainda assim, comoveu-me que esta estudante sobrecarregada de teoria-da-teoria se dispusesse a ler doze livros extraprograma, e a gastar seis tardes de sábado para viajar através deles com outros leitores.

Pois a exposição da Fernanda Fragateiro no CCB, que se chama «Das Histórias Nascem Histórias», visa precisamente conduzir as crianças para dentro da obra-em-si. O Instituto Português do Livro e das Bibliotecas pediu-lhe para criar uma exposição itinerante sobre a leitura, e a Fernanda decidiu trabalhar sobre dois livros do universo maravilhoso de Sophia de Mello Breyner Andresen – A Floresta e A Menina do Mar. Decidiu também que a exposição seria fortemente interactiva, de forma a que as crianças pudessem, de facto, brincar com as palavras de todas as maneiras. O resultado é magia concreta – um mar de meninos fascinados pelo brilho conjunto das palavras, das aguarelas, dos desenhos-cenário em espiral e das vozes dos actores que dão corpo às histórias. Esta exposição vai percorrer as bibliotecas de Portugal como um raio de luz, procurando nos corpos os cérebros abandonados pela pulverização dos «corpus».

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Pena que os livros de literatura,o chamado romance,não ensinam nada.Os textos jornalísticos me ensinaram muito mais,ou os livros didáticos mesmo.