domingo, maio 20, 2007

O problema do herói - Marc Soriano

Marc Soriano
Guide de Littérature pour La Jeunesse
Paris, Delagrave, 2002

Excertos adaptados


A leitura, esse milagre que nos é familiar

Ainda há menos de cinco minutos que eu era eu mesmo. Tinha a minha idade e as minhas preocupações profissionais e familiares, próprias do meu século. De repente, rejuvenesci 150 anos e tornei-me Lucien Leuwen, um jovem tenente do tempo de Luís Filipe.

Foi o enredo que me cativou ou terá sido o tom do narrador? Seja como for, eis-me de novo (de novo, porque já conheço o romance) enfeitiçado por Stendhal. Impaciento-me com o cavalo que o derruba, enterneço-me com o rosto de Madame de Chasteller, em suma, comovo‑me com uma personagem que não me é nada e que sei que nem sequer existe.

Ao mesmo tempo, continuo a ser quem sou. Só saí de mim na medida em que me quis tornar outro, um outro que eu queria secretamente ser. Adiro a uma ilusão que sei poder controlar. Sei que as lágrimas que derramo não são motivo de preocupação e que posso sorrir quando quiser.

Este prodígio, cujas características exteriores são uma distracção e uma atenção extremas, é um dos mais raros que a cultura alguma vez inventou e não se limita à leitura. Encontramo-lo em todas as satisfações de ordem estética. No entanto, o livro parece ser o meio que nos proporciona estas sensações de uma forma mais completa e satisfatória.

Podemos questionar-nos sobre a pertinência deste tipo de reflexão no que diz respeito à literatura juvenil, já que há críticos e historiadores que raramente evocam a questão da identificação, e muito menos o fazem em termos psicanalíticos. A maior parte dos escritores de romances para a infância e juventude acha evidente que as crianças e os jovens se identifiquem com as crianças e os jovens cujas aventuras lêem avidamente. Mas será assim tão evidente?

A identificação e as formas que assume

A identificação não é a justaposição ou a fusão de dois seres semelhantes. É, antes, um processo em que dois seres diferentes se esforçam por se assemelhar. A identificação em geral não existe. Existem formas diferentes, e por vezes contraditórias, de identificação. Dependem da idade da pessoa, do modelo com o qual ela se quer identificar, e do meio ao qual pertence. A única constante destas variáveis é o nosso poder de identificação, uma capacidade que caracteriza a nossa espécie. A comunhão que a leitura pressupõe repousa sobre a compreensão dos signos mas permanece, antes de mais, uma relação de ordem afectiva.

A identificação e a pesquisa científica

Toda e qualquer identificação pressupõem a existência de factores individuais: a estrutura familiar, atavismos, situações traumatizantes que marcaram a criança, em suma, a sua história. No entanto, os factores individuais organizam-se em estruturas iterativas. Assim, sempre que há desvios a uma dada norma reactiva, os médicos podem determinar melhor o que perturba a criança.

A ilustração do conto dos Grimm O Lobo e os Cabritinhos, que apareceu no decurso de um sonho de um paciente de Freud, permitiu a este reconstituir a “cena original” de O Homem e os Lobos. Um objecto concreto de identificação não deve impedir-nos de ver que a identificação, enquanto processo, é uma função subjacente ao nosso psiquismo. Como tem a ver com os mecanismos fundamentais de integração da criança na sociedade, não se sujeita a modas de uma época determinada e isso facilita uma análise mais objectiva das situações.

Os meios infantis homogéneos: heróis-guias e heróis-modelos

Há livros que eliminam as personagens adultas e que só apresentam personagens infantis, com o argumento de que os leitores só se identificam com aqueles que lhes são próximos em idade. Obras exemplificativas disto são os romances de Enyd Blyton. Talvez a sociedade infantil homogénea não passe de um mito, mas é um facto que as crianças do nosso tempo se aglutinam em “bandos” e que há crianças cuja falta de segurança pode ser compensada pela pertença a um grupo.

Os grupos: conflito de gerações ou recusa face à sociedade?

É normal que uma criança aprecie a companhia de crianças da sua idade, cujos gostos, necessidades e jogos lhe são próximos. A concentração urbana, o prolongamento da escolaridade e o desenvolvimento dos desportos colectivos contribuíram para a existência destes agrupamentos.

Mas esta tendência natural pode assumir, nos nossos dias, contornos aberrantes. Ao serem vítimas de um sistema que ora usa a repressão, ora usa a demissão, as crianças descobrem que o mundo em que vivem está ameaçado e tomam, mais cedo do que os seus pais tomaram, consciência das injustiças.

Têm, pois, tendência para se oporem aos adultos e para se distanciarem deles. É um facto que as crianças crescem por oposição, e que esta favorece a independência. No entanto, os adultos reagem mal à agressividade e à recusa dos jovens em estabelecer pontes, o que agrava o fosso entre as gerações.

Uma sociedade aberta não encontraria razões para desconfiar sistematicamente dos seus jovens, nem quereria tirar benefícios económicos do chamado “conflito de gerações”. As crianças interessam-se simultaneamente pelo mundo das crianças e pelo mundo dos adultos, uma vez que se encontram no cruzamento desses dois mundos.

Assim como um adulto inteligente e instruído se dá conta de que a aprendizagem é um processo contínuo, as crianças podem interessar-se por obras que não tenham nenhum herói infantil, mas cujo enredo comporte essa necessidade de aprendizagem, mesmo que de forma não explícita. Robinson Crusoe e Gulliver podem ser disso exemplo.

É talvez em Jules Verne que o esquema de aprendizagem aparece de forma mais clara. A personagem principal nunca é uma criança sozinha, mas um binómio criança/adolescente/adulto, este último servindo de guia, real ou figurativamente, ao seu companheiro mais jovem. Encontram-se ambos empenhados numa aventura que os obriga a inventar constantemente soluções novas.

Muitas das situações são resolvidas por adultos, mas acontece também que os jovens contribuam com a sua inteligência e engenho para a resolução dos problemas. Em Voyage au Centre de la Terre, o Professor Liddebenbrook ajuda o sobrinho a sair de situações delicadas, através do seu saber e tenacidade, mas Axel salvar-lhe-á a vida, graças à sua coragem e presença de espírito. O autor mostra aos jovens leitores o que devia passar-se na realidade: durante um certo tempo, são os adultos que protegem a criança. Quando os adultos envelhecem, cabe ao jovens tomarem conta da situação.

Estes exemplos cativam o público jovem porque lhe permitem compreender que a sua situação de crianças é transitória e que, um dia, também eles se tornarão adultos. Daí que a obstinação de certos autores e editores em mostrar os jovens em oposição aos adultos seja errada e traga graves prejuízos a um saudável entendimento entre gerações.

A criança aspira a encontrar o seu lugar no mundo e sabe que este é composto de crianças e adultos. Apresentar‑lhe uma sociedade apenas composta por crianças é negar-lhe essa interacção e condená-la à fantasia e à inadaptação.

Será que juventude precisa de heróis?

A análise anterior já responde, em certa medida, a esta pergunta. Mas precisamos de ter em conta a conotação que o herói assumiu na nossa situação histórica. A revolução científica e técnica contribuiu significativamente para a melhoria das nossas condições de vida, mas conduziu a uma divisão excessiva das tarefas e a uma desumanização das relações. Vemo-nos cada vez mais como seres solitários, condenados a conquistar a felicidade por oposição a um mundo que já não se nos assemelha.

A noção de herói assumiu, nesta óptica, um interesse muito particular. Trata-se de um homem só, admirado, mas incompreendido pelos seus contemporâneos. Há obras de arte e filosofias que assumiram esta concepção de herói para exprimir a sua nostalgia de um mundo mais justo. Esta imagem de herói, Moisés ou Zaratustra, pode ser encontrada na literatura para a juventude.

Nas obras de Jules Verne temos o homem justiceiro e sábio, que vive à margem da sociedade, seja debaixo das águas ou no ar. Prefere destruir as suas descobertas a vê-las cair nas mãos de uma sociedade que não as utilizaria para fazer o bem. Mas também temos lampejos do anti-herói: seres lunares como Le Petit Prince, ou insignificantes como Frédéric Moreau, Bouvard e Pécuchet, cujos fracassos e recusas reflectem a incapacidade de uma sociedade em resolver as suas contradições, em estabelecer uma comunicação fraterna.

Os heróis e os anti-heróis do século XX foram muitas vezes utilizados como instrumentos de guerra contra as ciências humanas. Bergson, na sua obra Les Deux Sources de la Morale et de la Religion opõe o sábio, que se apoia apenas na razão, ao herói e ao santo, que se apoiam na intuição e na paixão e que representam, para ele, modelos superiores que preparam o caminho para “sociedades mais abertas”.

Todas as facções que se defrontam no nosso mundo, país, movimento ideológico ou político, celebram os seus heróis. Mas estes heroísmos muitas vezes contraditórios deveriam ser alvo de uma reflexão salutar. Será que o heroísmo existe, independentemente do contexto? Poderemos chamar herói a um homem que sacrifica a sua vida por uma causa injusta ou desumana, ou a alguém que desafia a morte inutilmente, desperdiçando assim as forças preciosas da sua vida?

A televisão, o cinema, algumas bandas desenhadas popularizaram heróis do tipo super‑homem, violentos, racistas e sádicos. Embora a esmagadora maioria dos professores esteja contra este tipo de “heróis”, como poderemos vencer este tipo de “heroísmo” com argumentos morais, enquanto a nossa sociedade assentar no princípio da obtenção do máximo lucro, que tem por fim o aviltamento do gosto e da própria vida?
Os heróis necessários

Porém, não nos deixemos induzir em erro por esta crise que atravessa a nossa concepção de herói. A juventude precisa de heróis. Mas não precisa deles da forma doentia como muitos adultos alimentam essa sua necessidade.

Não há nada de absurdo em preferir o herói (e o santo) ao sábio. Só a paixão permite ao homem encontrar em si a obstinação e a paciência necessárias à realização de grandes feitos. Enquanto esses feitos não forem realizados, parecerão apenas loucuras. O erro está em opor o sábio ao herói, em apresentar esta escolha como uma exclusão, sem nos debruçarmos sobre o que constitui sabedoria e heroísmo.

O verdadeiro herói e o verdadeiro santo são os trabalhadores manuais ou intelectuais qualificados, e o sábio é o homem que reflectiu sobre a utilidade do seu trabalho. Isto é tão válido para o adulto como para a criança.

Temos de ajudar a criança a fazer descer o heroísmo do céu para a terra, levá-la a compreender que um acto não é heróico por causa da sua aparência, mas porque nos torna mais próximos da humanidade. À medida que for crescendo, a criança precisará menos de dividir o mundo em “bons” e “maus”. Mas os adolescentes precisam de ser ajudados, quanto antes, a compreender que nenhuma fronteira separa o “herói” das pessoas comuns e que o verdadeiro heroísmo é o heroísmo quotidiano.

Os heróis andam pelas ruas. É preciso que as crianças o saibam e que não deixem que lhes forneçam ideais inacessíveis e desencorajadores, que se tornariam para elas o que se tornaram para nós: meras desculpas para não assumirmos a verdadeira heroicidade.

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